Dão, dia 2: em Nelas já é preciso regar
Não é todos os anos, mas o Dão já vai precisando dessa ajuda. Em Nelas, a cerca de 440 metros de altitude, já é preciso regar a vinha. Reportagem no Dão, parte II.
Voltemos à estrada e ao nosso roteiro com a engenheira agrónoma Vanda Pedroso pelo Dão. Dividimos esta reportagem em três partes para falar de diferentes Dãos: Gouveia e encosta da serra da Estrela, Nelas (nesta segunda parte), Sátão e Penalva do Castelo. A engenheira agrónoma que trabalha há 40 anos no Centro de Estudos Vitivinícolas (CVDE) da região, em Nelas, leva-nos até à zona de Silgueiros, no mesmo concelho.
No Dão, região demarcada desde 1908, a paisagem é vinha, olival e pinhal; 20 897 hectares de vinha aprovada para Denominação de Origem (DO) e Indicação Geográfica (IG). Vamos conhecer a maior mancha contínua de vinha na região. Encontramos o responsável de viticultura nos Vinhos Borges (grupo JMV), Pedro Martins, a supervisionar uma plantação nova, de castas menos usuais hoje no Dão, mesmo à entrada da Quinta de São Simão da Aguieira.
Adquirida à família Sacadura Botte nos anos 1990 e 2000 pela Borges, a quinta tem 62 hectares, a que se somam outros cinco, a tal área acabada de plantar. Panos de vinha assim são uma vantagem enorme, mas não fazem o retrato do Dão. O mais habitual é alguém ter uma parcela aqui, outra ali, 200 metros quadrados aqui, 300 acolá.
Na parcela nova da Aguieira (tecnicamente é outra quinta, do outro lado da estrada, a Quinta da Roda), a Borges tem Encruzado, Barcelo, Uva-Cão, Gouveio, Cerceal Branco, Arinto do Interior e Bical, tudo castas brancas. O técnico explica-nos que havia défice de uva branca, que a empresa comprava ou trazia da Quinta do Loureiro, ali perto, que é da Casa Santos Lima mas está a ser explorada pela Borges. Nessa outra propriedade, a Borges tem também uma grande mancha, mas talhões mais pequenos e recortados. Várias castas também.
No caso do Dão, a Borges não é auto-suficiente, tem de comprar a produtores pequenos ali à volta, que têm, lá está, vinhas velhas, parcelas mais antigas que acrescentam valor aos vinhos. “Diria que, por um lado, essa procura de castas antigas [que está a acontecer no Dão] é nacional. Por outro lado, há uma certa estandardização em torno de algumas castas, que funcionam e fazem vinhos correctos. Seria um caminho mais fácil escolher uma casta e associá-la à região”, comenta Pedro.
Nesta zona da região, os humores do clima fazem-se sentir mais. É uma zona “mais precoce, onde o pintor [surgimento dos primeiros bagos com cor] é mais cedo”.“Enquanto do lado de lá [em Gouveia] não há rega, aqui já há rega”, observa Vanda Pedroso, enquanto percorremos a vinha. A Borges tem uma charca que em Julho já quase não tinha água. Pedro guardava religiosamente a pouca que ainda ali brilhava ao sol “para os brancos”, em que o stress hídrico não é “tão benéfico como nas castas tintas”. “O Dão não é como o Alentejo. Uns anos precisa de rega, outros não. Este ano precisa. Agora, há muitas parcelas de vinha onde não é possível regar. O Dão não tem água”, torna a técnica do CEVD.
Pedro Martins conta-nos que o monovarietal de Encruzado feito na Aguieira desaparece mal chega ao mercado, mas “pessoalmente” este técnico gosta do Alfrocheiro (na lista de castas mais disseminadas, compilada pela CVR Dão, é a nona, com 2,4 por cento do encepamento): “Pode ser diferenciador.” Como outros nesta reportagem, defende que “não há sítio onde a Touriga Nacional se expresse melhor” do que no Dão. Na Passarella, por exemplo, numa das parcelas afastadas da propriedade principal, Paulo Nunes tem 50 por cento de Touriga Nacional e 50 por cento de Tinta Roriz, mas está a fazer sobre-enxertia para concentrar ali toda a Touriga Nacional.
Cinco anos para reerguer a vinha
Em Abrunhosa do Mato, entre os concelhos de Mangualde e Nelas, a Quinta dos Roques acabou de reestruturar os últimos quatro hectares de vinha queimada nos incêndios de Outubro de 2017. “Dois terços da quinta, que tinha mais ou menos 40 hectares na altura e 80 por cento de brancos, desapareceram nessa noite” e isso está presente em qualquer conversa. “Em 2018, 2019 e 2020, não produzimos quase nada por causa do incêndio. Tivemos de reestruturar tudo e acabámos essa reestruturação em Março”, conta-nos João Santiago, técnico residente da empresa familiar fundada por Manuel Lopes de Oliveira em 1988 e que hoje integra também a Quinta das Maias.
É inevitável o tópico. E o medo. No segundo ano mais seco desde 1931, quando começaram a existir registos (o mais seco foi 2005), também nos Roques se regou a vinha. “Nós estamos a dar rega, com duas cisternas.”
Cerca de 90 por cento da produção da empresa vai para exportação. “[Quando foi dos incêndios] os clientes tiveram de compreender”, conta João Santiago, que vê com optimismo os próximos anos. Quando visitámos a adega, estavam a ser embalados vinhos que seguiriam para o Japão. “Estamos a penar que daqui a cinco, seis anos estejamos como estávamos antes.”
Do outro lado do “prato fundo” — é essa a imagem que escolhemos para descrever a orografia da região, que vista dos seus extremos parece um prato fundo em que os rebordos são as serras da Estrela, do Caramulo e do Açor e o centro um imenso vale com vários pequenos montes e vales dentro —, em Gouveia, a vida é mais fácil, confirma João Santiago. A Quinta das Maias, “a cerca de 800 metros de altitude” e onde “há muito mais água”, foi durante muitos anos a única vinha no Parque Nacional da Serra da Estrela: vinha ao alto, o que não é normal na região, e uma produção 100% biológica, incluindo as oliveiras nas bordaduras.
“Antigamente era onde desaconselhávamos, agora é onde estão a plantar. É onde há alguma defesa. E de certeza absoluta que vamos continuar a subir, Estrela e Caramulo, até onde o solo permitir produzir uva”, vaticina Vanda.
No sopé da Estrela, os Roques têm as mesmas castas. E mais uma, a Barcelo, que vinificam desde 2012 mas apenas nos anos em que a vindima dita uma boa colheita da casta. Pioneiros em muitos aspectos na região, foram os primeiros a ter Barcelo, casta que os Borges entretanto plantaram na Aguieira e que Paulo Nunes também tem na Passarella – as primeiras garrafas, da colheita de 2021, deverão chegar ao mercado em 2023; a primeira parte desta reportagem passou por lá.
Curiosamente, na Quinta dos Roques, e depois da reestruturação, apenas um terço dos actuais 44 hectares de vinha são castas brancas: Encruzado, Cerceal Branco, Bical, Gouveio e Malvasia Fina. Nos tintos, têm Touriga Nacional, Jaen, Alfrocheiro, Tinto Cão e Tinta Roriz. E “600 videiras de Baga com intenção de experimentar, para já”.
Paragem seguinte: Sátão e a Taboadella