O Coração Ainda Bate. A decepção

Inês Meneses escreve sobre a capacidade infindável de nos desiludirmos.

“As pessoas estão sempre a dizer quem são, mesmo quando não dizem nada. Ou sobretudo quando não dizem nada.” O Rui rematava assim um desabafo meu. Um alerta que soa às vezes entre amigos: aquele ou aquela que escolhemos por sabermos que nos vai compreender. Os amigos também se escolhem para os momentos, cada um para o seu, e não há ponta de oportunismo nisto. Há encaixe.

Os amigos preenchem um momento de cansaço em que sucumbimos, em que facilmente nos esquecemos de pôr as costas direitas e seguir em frente. Como quando apertávamos os atacadores dos sapatos – eu sempre disse cordões – e seguíamos em frente depois de termos esfolado os joelhos. “Que beleza desapontares-te assim depois de já teres vivido tanto”, acrescentou ele. E eu voltei à imagem, que me persegue, do sorvete de máquina, torneado, perfeito, a cair inteiro na areia. Não era apenas no chão, era na areia, e ninguém quer trincar areia.

Há pessoas exímias em disfarçar a decepção, mas hesito em pensar se nisto há virtude ou habilidade. Habilidade é o que têm os carpinteiros. Habilidosas são as pessoas que se esgueiram pela frincha da oportunidade e entram sem pedir licença fazendo parecer que sempre foram da casa, que sempre estiveram ali. É claro que o mundo está cheio dessas pessoas. Talvez por isso, em dias de decepção, o meu momento preferido seja aquele em que fecho a porta de casa e me ponho a salvo. Um banho, uma noite de sono, e a incompreensão do dia anterior esbate-se na manhã seguinte. Hoje, por exemplo, dormi como não dormia há meses.

A decepção, descubro, cansa-me. E cansa-nos a todos se nos quisermos importar, se não quisermos ensaiar um sorriso sardónico ao espelho: um sorriso postiço que sabemos que não é nosso mas que vai tornar invisível a nossa desilusão. Se encobrirmos a desilusão, como é que estamos a dizer aos outros que erraram? E podemos dizer-lhes, não para termos um pedido de desculpas que parece apagar um erro tremendo em cinco segundos, mas para que do outro lado percebam que não terão a oportunidade de voltar a magoar-nos. Porque a decepção, ou a desilusão, tem dor associada. É um casaco que nos cai das costas e que já não voltamos a apanhar. Talvez, intimamente, se possa concluir que o casaco era bonito e foi uma pena perdê-lo, mas lá estamos nós a seguir em frente. Estamos sempre a seguir em frente para não ficarmos baços.

Eu tenho muito medo de um dia perder o brilho, porque me move o espanto e quero sempre ir atrás do que me faz abrir os olhos e dizer: “Pois é!” Quando somos miúdos e nos explicam as coisas difíceis, e depois finalmente as compreendemos, dizemos, contentes: “Pois é!” Como se, por fim, tudo fizesse sentido. Como se pudéssemos então seguir para a próxima etapa mais apetrechados de sabedoria, do conforto de sabermos, de estarmos vivos ainda sem consciência da finitude. Vale a pena dizer que quando somos miúdos as decepções também doem muito. Doem mais. O casaco cai ao chão e gritamos alto que o queríamos porque era bonito. Quando um amigo nos desilude, não disfarçamos nada. Não há nenhum sorriso postiço. Deixamos de lhe falar. Amuamos. Apontamos para o sorvete cheio de areia.

“As pessoas estão sempre a dizer quem são, mesmo quando não dizem nada. Ou sobretudo quando não dizem nada.” O Rui a acertar em cheio na decepção que eu lhe tinha desembrulhado. Ali estava eu a mostrar-lhe que também me magoo, não importa a idade que tenho. A capacidade de nos espantarmos é quase igual à de nos magoarmos. Depois dormimos bem e voltamos a ficar quase intactos. Quase, porque, por cada amigo que nos desilude, há uma cicatriz pequenina e invisível na nossa pele. Só nós sabemos onde está e que fica ali para sempre.

O coração ainda bate.

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