Morreu Avelino Tavares, que nos deu Mundo da Canção
Criou uma revista de título inócuo e que escapou ao crivo da censura até 1973. Por lá passaram nomes da canção portuguesa e internacional, na sua maioria pessoas politicamente engajadas. Tinha 85 anos
Em 1969, Avelino Tavares, que morreu este domingo à noite, aos 85 anos, pôs nas bancas pela primeira vez a Mundo da Canção, uma revista com um nome propositadamente inócuo. A notícia da morte foi avançada pelo Jornal de Notícias.
Até 1985, a revista e o seu responsável dariam espaço, a partir do Porto, a vários nomes da canção portuguesa e internacional, na sua maioria pessoas politicamente engajadas, focando músicos como José Afonso, José Mário Branco, Luís Cília, Fausto, entre muitos outros. Publicava também letras de canções portuguesas e estrangeiras.
Ao PÚBLICO, Arnaldo Trindade, da editora discográfica Orfeu, que lançou vários dos artistas que saíam nas páginas da Mundo da Canção, lamenta a morte de um amigo. "Fez parte das pessoas que tiveram coragem, durante o fascismo, de dizerem alguma coisa", conta. A revista era, diz, "uma dimensão da Orfeu no papel", numa altura em que "não havia mais ninguém na imprensa e na rádio" a pegar naquela música. Havia também colaboradores em comum entre a editora e a revista. O amigo, continua, "era uma figura extraordinária, fora do tempo, era a única pessoa que se preocupou com o fenómeno da Nova Canção Portuguesa, iniciada pelo Adriano [Correia de Oliveira] e o José Afonso, que outros continuaram".
A revista de Avelino Tavares ficou conhecida como "MC", conseguiu escapar ao crivo da censura até 1973, quando uma edição com vários discos na capa foi apreendia pela PIDE antes de sair – só chegou aos leitores após o 25 de Abril e nunca mais uma Mundo da Canção foi publicada sem antes ter autorização censória. A ideia, dizia o próprio fundador e editor, era "lutar contra o cançonetismo apodrecido e ajudar a construir uma canção diferente". Começou com uma tiragem de 4500 exemplares e chegou até aos 25 mil. A revista voltou brevemente no início dos anos 1990, para uma série de edições temáticas.
Arnaldo Trindade refere que o amigo "não foi uma figura nacional, por estar no Porto". Por isso, crê, a sua revista pôde continuar tanto tempo sem levantar a atenção do regime. "Eram mais ferozes na capital", partilha.
Depois da revista, a discoteca
Nem só da canção portuguesa vivia a revista. A capa de Julho de 1970 traz uma fotografia de Manuel Freire e chamadas para textos sobre Leonard Cohen, Donovan, Deniz Cintra, Arrival, The Beatles, José Afonso, Jethro Tull, Moody Blues, Rita Olivaes, Joni Mitchell, Bee Gees, Ernesto César, Robin Gibb, Family Dogg e Objectivo.
Passados 11 anos, a capa da edição de Fevereiro/Março de 1981, por exemplo, tem uma fotografia de John Lennon, outras da cantora francesa Colette Magny, dos punks britânicos Sex Pistols e de José Afonso, trazendo uma entrevista com ele. Há chamadas ainda para textos sobre Milton Nascimento, Peter Gabriel, The Clash, Neil Young, Pedro Barroso, Luísa Basto, Talking Heads, Nina Hagen e Dire Straits. Menciona-se ainda um balanço do ano de 1980, em termos de música portuguesa, de concertos em Portugal, e de "um ano de rock em disco".
No início dos anos 1980, abriu também, na sua cidade, uma loja chamada MC Discoteca, trazendo ao público muita música internacional que não tinha grande atenção de outra forma. No final dessa década tornou-se importador e distribuidor de discos de folk, jazz, blues ou world music.
Foi também, ao mesmo tempo, agente de artistas como os Roxigénio ou Arte & Ofício, e produtor de espectáculos. Fez dois convívios Mundo da Canção em 1970, com Manuel Freire e Vieira da Silva. Trouxe depois à sua cidade nomes como Leo Ferré, Cesária Évora, Paco de Lucía, Gal Costa, Astor Piazzola, Atahualpa Yupanqui, Nara Leão, Egberto Gismonti ou Miles Davis. Foi ele quem organizou, lembra Arnaldo Trindade, o derradeiro concerto de José Afonso, já debilitado, no Coliseu do Porto.
Trabalhou ainda na organização, produção ou divulgação de festivais como o Festival de Jazz do Porto, o Praia Blues, o Intercéltico do Porto, o Gaia Blues Festival, o Matosinhos em Jazz ou o Funchal Jazz Festival. Ainda foi responsável por uma digressão de Patxi Andión em Portugal. Teve ainda, nos anos 1980, e na Rádio Delírio, do Porto, que durou pouco tempo, um programa chamado Arca de Noé.
O nome "MC" foi ainda usado para uma edições de livros, como biografias, poemas e entrevistas que saíram originalmente na revista.