Postal de Mesão Frio: As vindimas
A vista desobstruída para o Douro revelava águas quietas e brilhantes, refletindo a gentil carícia do sol. “A mais bela paisagem do mundo”, disse para mim próprio.
1.
Eram 9h15 quando cheguei à localidade de Fonte da Condessa-Minhoto, na freguesia de Vila Marim, concelho de Mesão Frio. Chovia ligeiramente. Quase no topo da encosta, via-se, por entre os vapores intermitentes da neblina, o Douro. Tão quieto que parecia parado. A sua serenidade em determinadas zonas do seu curso inspirou poetas e escritores ao longo dos séculos. Já o observei durante horas com a ambição de lhe beber essa famosa serenidade. Mas repito-o sempre que posso. Cada sorvo é como se fosse o primeiro.
Na vinha, uma azáfama. A vindima já havia começado às 7h30 da manhã. Apressei-me a pedir orientações. Passaram-me uma tesoura de poda para a mão. Perguntei como se fazia.
– Isto não tem muito que saber. Afasta as folhas para ver onde estão os cachos, segura, corta a haste e põe no balseiro. O que estiver podre deixa ficar aí – orientou-me brevemente um rapaz com um balseiro ao ombro.
– E estes cachos com as pontas secas? – indaguei.
– São para cortar. Mas pode deixar seguir um ou outro cacho desses que não vem mal ao mundo – acrescentou, despejando a carga no contentor atrelado ao trator.
Deitei mãos à obra. Não é difícil, mas exige atenção e critério.
– Há aqui algumas uvas podres. Se chegam à adega, eles não gostam e vem tudo para trás e é uma chatice – observou o condutor do trator, erguendo a voz. Alguns trabalhadores a curta distância levantaram a cabeça, mas nada disseram.
Fiz uma retrospectiva rápida dos cachos que já tinha colhido e continuei a dar à tesoura. Ainda mais concentrado.
De repente, um chamamento: “Vamos à piqueta*!”
O grupo reuniu-se junto a uma carrinha de caixa aberta. Dona Amélia, a feitora da quinta, usando o compartimento de carga como mesa, destapou o tacho das batatas e expôs as sardinhas assadas alinhadas em duas travessas de metal.
– Para quem quiser, há aqui azeite. E vinagre de maçã, que dizem que é mais saudável que o de vinho.
– Ainda quase nem trabalhei e já estou a comer – disse, envergonhado pelo meu escasso contributo.
“Coma para ter força para o que aí vem a seguir”, gracejou o Tónio, enquanto se servia de um copo de tinto. Sorri, anui e peguei no garrafão para encher o meu copo e de um camarada que comia a seco. Sardinhas assadas, batatas cozidas e vinho tinto às 10 da manhã. Habituava-me a isto.
(*A piqueta é um momento de pausa a meio da manhã para comer uma “bucha”, beber um copo e conviver um pouco. Era tradição nas vindimas, mas também na apanha da azeitona e na ceifa dos cereais.)
O trabalho prosseguiu pouco depois com o estômago reconfortado. A chuva não deu tréguas. Havia quem falasse na possibilidade de a adega cancelar a vindima da parte da tarde. “Isto não é bom para o grau da uva”, lamentou um dos carregadores, empilhando os balseiros cheios de uvas e cobrindo-os com plástico.
A hora do almoço chegou quase sem darmos por isso. Abrigámo-nos num casebre. Vesti umas calças (tinha ido de calções…) e tirei as sapatilhas encharcadas. Escolhi um par de meias secas entre uma dúzia à disposição (também havia uma pilha de camisolas e camisas) e enfiei um par de galochas tamanho 41 em pés que calçam dois números acima. Era o que havia.
Comemos feijoada com arroz e bebemos vinho tinto. Rematámos com café vazado de um termo.
– Não falta nada – disse.
– Tem de ser assim, quem trabalha tem de comer – ouvi alguém dizer já do lado de fora do casebre.
2.
O dia seguinte amanheceu menos nublado. A vista desobstruída para o Douro revelava águas quietas e brilhantes, refletindo a gentil carícia do sol. “A mais bela paisagem do mundo”, disse para mim próprio. Já o dissera outras vezes sobre outros lugares. Há que ser coerente. Aquilo que nos parece em determinado momento reflete as inclinações, os desejos, a idade, os tempos e as circunstâncias desse mesmo momento. O presente.
Inspirei, expirei e recomecei.
“Hoje veio mais gente. Se não chover, vai correr ainda melhor que ontem”, ouvi dizer do outro lado da videira.
– É difícil arranjar gente para trabalhar. A maioria das pessoas que aqui está são meus familiares diretos, familiares do antigo feitor da quinta ou pessoas que já trabalham comigo habitualmente – esclareceu a dona Amélia, enquanto recolhia os pratos sujos do almoço.
– Acho que é assim um pouco por todo o lado... – acrescentei.
– E aqui ainda mantemos a tradição da piqueta e do almoço, porque já são poucas as quintas que dão comida às pessoas. Agora chega tudo à vindima com o saquinho da marmita na mão – explicou a dona Amélia, desiludida com a tradição que se extingue.
– Ah, eu pensava que era assim em todo o lado…
– Já foi, já foi, mas agora é tudo a seco. Primeiro porque preparar duas refeições, uma a meio da manhã e o almoço, dá muito trabalho. Para ter uma ideia, hoje às seis da manhã já tinha descascado estas batatas todas que estamos aqui a comer. E são mais de 20 pessoas para alimentar. E depois porque há sítios onde as pessoas são esquisitas e não gostam da comida e reclamam que não está como gostam. É que uma coisa é fazer comida para meia dúzia, outra é cozinhar para 20 ou 30. E como aqui não temos cozinha, tenho de andar de um lado para o outro com as coisas às costas. E claro que a comida não chega à mesa como se tivesse sido acabada de fazer, não é? Mas tenho pena de ter terminado essa tradição, era outra alegria e camaradagem. É na hora das refeições é que se convive mais – explicou a dona Amélia.
– Bolinho? – pergunta Catarina, filha de dona Amélia, com um enorme tabuleiro de pão de ló nas mãos.
– Aceito, claro! Obrigado!
– E um cálice de Porto?
– Também! Também! – exclamei.
– Está a ver, por isso é que não falta aqui gente para trabalhar – gracejou a dona Amélia.
– Para o ano conte comigo!
– Se houver, se houver… – concluiu.
A ementa dos três dias:
Sábado
Piqueta: Sardinhas assadas com batata cozida, vinho e Sumol
Almoço: Feijoada com arroz, vinho tinto, Sumol, água e café
Domingo
Piqueta: Entremeada com batata cozida, vinho tinto e Sumol
Almoço: Borrego assado com batata assada e arroz de forno e bolo (pão de ló) acompanhado de cálice de Porto, vinho tinto, Sumol, água e café
Segunda-feira
Piqueta: Bola de carnes, caldo de cebola e vinho tinto
Almoço: Rancho, vinho tinto, Sumol, água e café
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990