Postal de Mesão Frio: As vindimas

A vista desobstruída para o Douro revelava águas quietas e brilhantes, refletindo a gentil carícia do sol. “A mais bela paisagem do mundo”, disse para mim próprio.

Foto
“A hora do almoço chegou quase sem darmos por isso. (…) Comemos feijoada com arroz e bebemos vinho tinto” João da Silva
Ouça este artigo
00:00
06:50

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

1.

Eram 9h15 quando cheguei à localidade de Fonte da Condessa-Minhoto, na freguesia de Vila Marim, concelho de Mesão Frio. Chovia ligeiramente. Quase no topo da encosta, via-se, por entre os vapores intermitentes da neblina, o Douro. Tão quieto que parecia parado. A sua serenidade em determinadas zonas do seu curso inspirou poetas e escritores ao longo dos séculos. Já o observei durante horas com a ambição de lhe beber essa famosa serenidade. Mas repito-o sempre que posso. Cada sorvo é como se fosse o primeiro.

Na vinha, uma azáfama. A vindima já havia começado às 7h30 da manhã. Apressei-me a pedir orientações. Passaram-me uma tesoura de poda para a mão. Perguntei como se fazia.

– Isto não tem muito que saber. Afasta as folhas para ver onde estão os cachos, segura, corta a haste e põe no balseiro. O que estiver podre deixa ficar aí – orientou-me brevemente um rapaz com um balseiro ao ombro.

– E estes cachos com as pontas secas? – indaguei.

– São para cortar. Mas pode deixar seguir um ou outro cacho desses que não vem mal ao mundo – acrescentou, despejando a carga no contentor atrelado ao trator.

Deitei mãos à obra. Não é difícil, mas exige atenção e critério.

– Há aqui algumas uvas podres. Se chegam à adega, eles não gostam e vem tudo para trás e é uma chatice – observou o condutor do trator, erguendo a voz. Alguns trabalhadores a curta distância levantaram a cabeça, mas nada disseram.

Fiz uma retrospectiva rápida dos cachos que já tinha colhido e continuei a dar à tesoura. Ainda mais concentrado.

De repente, um chamamento: “Vamos à piqueta*!”

O grupo reuniu-se junto a uma carrinha de caixa aberta. Dona Amélia, a feitora da quinta, usando o compartimento de carga como mesa, destapou o tacho das batatas e expôs as sardinhas assadas alinhadas em duas travessas de metal.

– Para quem quiser, há aqui azeite. E vinagre de maçã, que dizem que é mais saudável que o de vinho.

– Ainda quase nem trabalhei e já estou a comer – disse, envergonhado pelo meu escasso contributo.

“Coma para ter força para o que aí vem a seguir”, gracejou o Tónio, enquanto se servia de um copo de tinto. Sorri, anui e peguei no garrafão para encher o meu copo e de um camarada que comia a seco. Sardinhas assadas, batatas cozidas e vinho tinto às 10 da manhã. Habituava-me a isto.

(*A piqueta é um momento de pausa a meio da manhã para comer uma “bucha”, beber um copo e conviver um pouco. Era tradição nas vindimas, mas também na apanha da azeitona e na ceifa dos cereais.)

O trabalho prosseguiu pouco depois com o estômago reconfortado. A chuva não deu tréguas. Havia quem falasse na possibilidade de a adega cancelar a vindima da parte da tarde. “Isto não é bom para o grau da uva”, lamentou um dos carregadores, empilhando os balseiros cheios de uvas e cobrindo-os com plástico.

A hora do almoço chegou quase sem darmos por isso. Abrigámo-nos num casebre. Vesti umas calças (tinha ido de calções…) e tirei as sapatilhas encharcadas. Escolhi um par de meias secas entre uma dúzia à disposição (também havia uma pilha de camisolas e camisas) e enfiei um par de galochas tamanho 41 em pés que calçam dois números acima. Era o que havia.

Comemos feijoada com arroz e bebemos vinho tinto. Rematámos com café vazado de um termo.

– Não falta nada – disse.

– Tem de ser assim, quem trabalha tem de comer – ouvi alguém dizer já do lado de fora do casebre.

2.

O dia seguinte amanheceu menos nublado. A vista desobstruída para o Douro revelava águas quietas e brilhantes, refletindo a gentil carícia do sol. “A mais bela paisagem do mundo”, disse para mim próprio. Já o dissera outras vezes sobre outros lugares. Há que ser coerente. Aquilo que nos parece em determinado momento reflete as inclinações, os desejos, a idade, os tempos e as circunstâncias desse mesmo momento. O presente.

Inspirei, expirei e recomecei.

“Hoje veio mais gente. Se não chover, vai correr ainda melhor que ontem”, ouvi dizer do outro lado da videira.

– É difícil arranjar gente para trabalhar. A maioria das pessoas que aqui está são meus familiares diretos, familiares do antigo feitor da quinta ou pessoas que já trabalham comigo habitualmente – esclareceu a dona Amélia, enquanto recolhia os pratos sujos do almoço.

– Acho que é assim um pouco por todo o lado... – acrescentei.

– E aqui ainda mantemos a tradição da piqueta e do almoço, porque já são poucas as quintas que dão comida às pessoas. Agora chega tudo à vindima com o saquinho da marmita na mão – explicou a dona Amélia, desiludida com a tradição que se extingue.

– Ah, eu pensava que era assim em todo o lado…

– Já foi, já foi, mas agora é tudo a seco. Primeiro porque preparar duas refeições, uma a meio da manhã e o almoço, dá muito trabalho. Para ter uma ideia, hoje às seis da manhã já tinha descascado estas batatas todas que estamos aqui a comer. E são mais de 20 pessoas para alimentar. E depois porque há sítios onde as pessoas são esquisitas e não gostam da comida e reclamam que não está como gostam. É que uma coisa é fazer comida para meia dúzia, outra é cozinhar para 20 ou 30. E como aqui não temos cozinha, tenho de andar de um lado para o outro com as coisas às costas. E claro que a comida não chega à mesa como se tivesse sido acabada de fazer, não é? Mas tenho pena de ter terminado essa tradição, era outra alegria e camaradagem. É na hora das refeições é que se convive mais – explicou a dona Amélia.

– Bolinho? – pergunta Catarina, filha de dona Amélia, com um enorme tabuleiro de pão de ló nas mãos.

– Aceito, claro! Obrigado!

– E um cálice de Porto?

– Também! Também! – exclamei.

– Está a ver, por isso é que não falta aqui gente para trabalhar – gracejou a dona Amélia.

– Para o ano conte comigo!

– Se houver, se houver… – concluiu.

A ementa dos três dias:

Sábado

Piqueta: Sardinhas assadas com batata cozida, vinho e Sumol
Almoço: Feijoada com arroz, vinho tinto, Sumol, água e café

Domingo

Piqueta: Entremeada com batata cozida, vinho tinto e Sumol
Almoço: Borrego assado com batata assada e arroz de forno e bolo (pão de ló) acompanhado de cálice de Porto, vinho tinto, Sumol, água e café

Segunda-feira

Piqueta: Bola de carnes, caldo de cebola e vinho tinto
Almoço: Rancho, vinho tinto, Sumol, água e café


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Comentar