Postais de Viena II: As quatro estações

Era a hora do jantar lá em casa. Comia de tudo, mas torcia o nariz ao peixe cozido. Torcia o nariz, mas comia. Antigamente era assim. Chamava-se educação.

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"Peter Profant, músico profissional, já parara de tocar quando cheguei à plateia" João da Silva
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Em meados nos anos 80, após os créditos finais do Telejornal, a “Primavera” de As quatro estações (Le quattro stagioni, no original), de Vivaldi, enchia os lares portugueses de flores, de aromas, de cores e de pássaros a cantar. Durante pouco mais de dois anos (aceitam-se correcções), a música do genérico do boletim meteorológico da RTP foi o mais bonito genérico do mundo. E afirmo que nunca mais houve um tão bonito na “nossa” televisão (estou irredutível).

Poucas músicas serão tão consensuais como As quatro estações, de Vivaldi. Nunca conheci ninguém, apreciador ou não de música clássica, que me dissesse que não gosta da sinfonia do compositor italiano. Em Viena, onde o ambiente é tão musical que sentimos ser quase uma imposição (uma imposição boa) assistir a um concerto numa sala de espetáculos ou numa catedral, As quatro estacões é uma das escolhas mais comuns. Percebe-se. Datada de 1723, a coleção de quatro concertos para violino e orquestra, cada um correspondendo a uma estação do ano, é harmoniosa e de fácil audição e entendimento. Como já ouvi dizer da boca de uma adolescente que desconhecia Vivaldi e também Mozart (!), “ouve-se bem”. Receitei-lhe, mesmo parecendo chato e tolo, a audição de As quatro estacões e da Pequena serenata noturna de fio a pavio.

Na Catedral de Santo Estêvão, enquanto o sol se punha e os vitrais perdiam cor e detalhe, quatro violinos e um violoncelo conduziram-me a uma pitoresca vila com ruas de paralelepípedos e ciprestes, onde bebi a água que jorra da fonte medieval na primavera enquanto escutava o canto dos pássaros, aqui e ali interrompido por súbitas e ruidosas tempestade de verão; depois, dancei com os camponeses no remate das colheitas de outono e caminhei, cautelosamente e tremendo de frio, sobre a superfície escorregadia de um lago gelado, exposto a todos os ventos.

Uma hora e meia a viver no boletim meteorológico da RTP em meados dos anos 80. Era a hora do jantar lá em casa. Comia de tudo, mas torcia o nariz ao peixe cozido. Torcia o nariz, mas comia. Antigamente era assim. Chamava-se educação. Memórias (boas) de infância. Fui às lágrimas.

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Não me recordo qual era a estação de metro. Não é importante. Caminhava com a calma de quem não tem horário nem é esperado. Mas ao ouvir os acordes de violoncelo, acelerei o passo. Não reconheci a música. Quase corri. Em vão. Peter Profant, músico profissional, já parara de tocar quando cheguei à plateia. Vi-o limpar o suor e ajeitar o cabelo (uma impossibilidade). A caixa do violoncelo entreaberta à sua frente exibia meia dúzia de moedas. Deitei a mão aos bolsos. Senti o cartão multibanco num, algumas moedas noutro. Contei-as. 80 cêntimos. Avancei. Embaraçado, atirei as moedas para a caixa. Peter acenou ligeiramente com a cabeça e preparou-se para voltar a tocar. Afastei-me.

Ao vivo e cores, o genérico do boletim meteorológico, os meus pais, a minha irmã, o peixe cozido. Que saudades.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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