Creches que não deixam os pais entrar

Qualquer creche que exige uma adaptação imediata não está apta a tomar conta dos filhos de ninguém. Porque não conhece, nem respeita, o desenvolvimento infantil.

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Eduardo Moser/sandradesign
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Querida Filha, que saudades!

Passaste umas férias boas sem as minhas birras?

A mim fizeram-me imensa falta, e hoje decidi que já chega! Depois daquilo a que assisti hoje decidi mandar às urtigas o nosso pacto de silêncio, destinado a recarregar baterias, e avançar uma semana antes da data prevista. Que recomecem as Birras de Mãe!

O que me aconteceu? Fiquei à espera do autocarro à porta de uma creche, de onde fui vendo sair mães e pais lavados em lágrimas.

Que aperto no coração.

Uma das mães apanhou o meu transporte e, sabes como sou, meti logo conversa. O filho tem 8 meses, e até agora ficou com os pais, graças às licenças parentais, coladas com as férias. Até hoje... agora a mãe teve de o deixar com estranhos, e virar as costas ao seu bebé, que ficou a chorar desalmadamente.

Disse-me que neste primeiro dia só vai ficar duas horas, graças à avó que o vai buscar, e depois aumentará gradualmente o tempo de permanência, considerando-se, no meio das lágrimas, uma mãe com sorte.

Mas estava desconsolada porque não lhe tinham permitido que ficasse com o filho um bocadinho até ele se acalmar. Aparentemente, naquela creche, tal é proibido. “Disseram-me 'A mãe já sabia que não podia ser'”, repetiu, escondendo a cara nas mãos. Calei a minha tentação de fazer uma comparação imediata com as entregas da Uber — é entregar e vir embora.

Ana, sabes bem que não sou apologista de que as mães com filhos deixem de trabalhar fora de casa, mesmo quando a situação económica o permite, porque me parece tão importante terem vida própria, e um ordenado que lhes garante independência.

Também, confesso, porque suspeito que me encheria de tédio passar 24 horas sobre 24 horas com uma criança, sem um outro desafio para os neurónios, mas tive a sorte de vos poder deixar até aos 3 anos com uma ama que tinha apenas um grupo muito pequenino de crianças e em quem confiava a 100 por cento.

Mesmo assim, os primeiros dias foram horríveis, e os primeiros tempos difíceis. É que ainda são pequeninos demais para lhes podermos dizer que a mãe ou o pai já vêm, pequeninos demais para se entreterem com as outras crianças à sua volta, como é que podem não se sentir absolutamente abandonados?

Toda a esperança de uma mãe fica naquele momento depositada na “educadora” — só ela pode ajudar o bebé e os pais. Ana, tu que já estiveste do “lado de dentro”, a receber estas crianças, que conselhos, que consolo podes dar a quem passa por isto agora? E que “exigências” podem legitimamente fazer à creche que acolhe os filhos, superando o medo de que os filhos “sofram” represálias por serem os das “mães-chatas” que põem alguma coisa em causa?

Responde-me depressa, porque fiquei angustiada.


Querida Mãe,

Ai! Fico de coração apertado por essa mãe e por esse bebé. Até porque na grande maioria das vezes não deixam os filhos numa creche porque o desejam ou se sintam preparadas para voltar ao trabalho, mas porque não têm mesmo outra hipótese, e mesmo os poucos meses de licença a que têm direito são ensombrados pelo medo de que naquele tempo em que estiveram fora, alguém já lhes tenha passado à frente...

Mas, falando de creches: já não há desculpas para que não se encare a sua função de uma forma séria e profunda — embora os estudos sobre a importância e o impacto das experiências nessas idades sejam vários e robustos, acredita que só há poucos anos começámos a ter especializações em Educação em contexto de creche? Como se fosse igual acolher e acompanhar crianças de 3 meses ou de 3 anos!

Por isso, não vamos atirar areia para os olhos das mães já ansiosas, dizendo-lhes que “Até faz bem à criança socializar” ou “Ah, custa mais às mães do que aos filhos”. Não. Custa a todos. Pode ser necessário, e pode ser bem feito tornando-se numa experiência boa, mas não deixa de ser uma adaptação gigante que deve ser feita de forma séria e responsável.

Sinceramente, qualquer creche que exige uma adaptação imediata (deixar e ir embora de imediato no primeiro dia) não está apta a tomar conta dos filhos de ninguém. Porque não conhece, nem respeita, o desenvolvimento infantil.

Qualquer creche que “feche” a porta aos pais e não lhes permita entrar e ver o que se passa é de desconfiar.

Qualquer creche que não faça da sua missão tratar cada uma das crianças como única, procurando saber quais são os seus hábitos em casa, e dedicando tempo e respeito a manter essa ponte, enquanto obviamente a vai ajudando a entrar nas rotinas da escola, está a falhar.

E o que é que os pais podem fazer para tornar este momento mais fácil?

#1 Perguntar meses antes qual a rotina de comida e sono da creche e ir tentando criar uma parecida para a transição ser mais fácil.

#2 Fazer uma adaptação gradual, dentro do que for possível: ir com ele à escola e brincar lá com ele durante alguns dias, interagindo com a educadora; noutro dia, deixar uns minutos para ir beber um café; no dia seguinte, um pouco mais tempo, etc.

#3 Nunca fugir sem dizer adeus — primeiro parece uma coisa boa, porque não vemos o choro, MAS a criança ficará ainda mais agarrada e ansiosa no dia seguinte, porque fica a sentir que a mãe pode desaparecer, sem aviso, a qualquer momento.

#4 Não ficar preocupada se a criança se recusar a comer, ou comer menos, durante os primeiros tempos.

#5 Explicar à educadora os seus hábitos (embora possam mudar por ser uma pessoa diferente) para adormecer ou consolar. Obviamente levar com ele o peluche ou boneco a que é mais ligado.

#6 Ter muita disponibilidade emocional e física para quando o bebé volta da creche, e descarrega a tensão que acumulou.

#7 Combinar com a educadora/auxiliar uma hora/tempo para ligar/enviar mensagem a saber do bebé.

#8 Ter alguém a quem ligar para desabafar/chorar.

#9 Voltar sempre à hora prometida, mesmo que achemos que não têm noção da hora.

Para além de tudo isto, precisamos de mais apoio e mais tempo de licença para as famílias! (mas isso fica para outra birra!)

Beijinhos!


Com o Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Depois das férias de Verão de 2023, estão de volta com uma nova temporada repleta de birras.

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