Havia (há?) um lamento das gentes de Cuba em relação à Herdade do Rocim, conta-nos o seu responsável de eventos e enoturismo, Bruno Gomes: “Só falam da Vidigueira, mas vocês são da Cuba.” É que se chegamos a este canto do Alentejo pelo vinho, como é o caso, estamos na sub-região Vidigueira (da Denominação de Origem Controlada), que abrange, além do concelho homónimo, ainda os de Cuba e Alvito. Porém, a Herdade do Rocim fica no concelho e Cuba e decidiu dar-lhe a atenção devida. “Em Cuba sê alentejano” é uma nova experiência proporcionada pela Herdade do Rocim que promete vivências na vila alentejana — que, na verdade, se estendem pelo concelho, contam com inúmeros parceiros e, claro, nunca estão longe do vinho.
Sim, temos as histórias da origem cubense de Cristóvão Colombo (por aqui, é Cristóvão Colon e tem direito a um centro interpretativo) e a da vida do escritor Fialho de Almeida, autor de O País das Uvas, com direito a uma casa-museu — e, se planeado, há a possibilidade de provar uma das suas receitas, o arroz de perdizes “à Fialho”, parte da ementa de vários restaurantes locais cuja visita é incontornável nesta experiência. Temos o cante omnipresente e este Verão até abriu a praia fluvial, prometida desde 2021.
Porém, o que mais ressalta desta incursão por Cuba é o vinho, não fosse o nosso anfitrião um dos produtores deste canto do Alentejo, todo ele planura desenhada a vinhedos e encaixado a sul da serra do Mendro. Um cenário que se mantém desde o tempo da ocupação romana do território, quando já se fazia vinho por aqui. O método ancestral utilizado por estes “atravessou gerações”, nota Bruno Gomes, chegando à terceira década do século XXI a viver um renascimento — agora, o vinho de talha, que se manteve como produção caseira, tantas vezes em “tarecos” (talhas pequenas), é visto como uma mais-valia.
Há quem o faça apenas “por brincadeira para os hóspedes”, como na Pedremoura, um turismo rural que existe há três anos, com uma adega construída um ano depois. Na propriedade, conta-nos Dulce Lopes, a proprietária, já existiam duas pequenas vinhas e laranjeiras, explica, a rodear uma pequena “casinha de bonecas” — a casinha de bonecas é agora uma lavandaria e o monte tem seis quartos de hóspedes, todos com nomes de castas, todos virados para a pequena piscina infinita onde o olhar se perde nas vinhas até encontrar a adega, que era apenas um barracão agrícola.
É na adega que temos uma prova de vinhos com queijos da região — os vinhos são os de talha da Herdade do Rocim e os queijo da Queijaria Pacheco, um negócio familiar centenário que começou em Santa Clara do Louredo e veio para Cuba há oito anos, instalando-se no seu parque industrial, explica Filomena Soudo. Aí, podem fazer-se visitas guiadas (sempre gratuitas) e provar os queijos Serpa DOP (que constituem 90% da produção), mas também os de ovelha curados e amanteigados e de cabra como os que desfilam pela nossa mesa.
Há também quem mude de vida para se dedicar ao vinho de talha, como Alda Parreira e Luís Garcia, que vieram da Amadora para Vila Alva, a terra dela, para assumir in loco um projecto de amigos que tem como base a Adega do Mestre Daniel, o avô de Alda. Mestre porque era carpinteiro, e neste espaço, onde tinha a oficina, também tinhas as talhas, 26, onde explorava a outra paixão, o vinho.
Alda, o irmão Daniel, Ricardo Santos e Samuel Pernicha recuperaram essa paixão num projecto a que chamaram precisamente XXVI Talhas e que começou como um hobby, em 2018, recorda. Todos viviam fora e vinham aos fins-de-semana e nas vindimas. Em 2019, começaram a engarrafar e, em Julho de 2022, Alda e o marido mudaram-se para aqui e agora esta adega é das poucas na freguesia (que já foram 72 “com pelo menos três talhas”, e agora são dez, 12 no activo, “os teimosos”) que faz provas de vinho com acompanhamentos durante todo o anos.
Somos recebidos com uma mesa composta por pão, enchidos e queijos e várias garrafas de vinho — mais tarde, virá o jantar, feito pela mãe de Alda (com encomenda prévia). Mas, primeiro, a visita à adega, onde estão 31 talhas, todas antigas (uma é mesmo da segunda metade do século XVII). A única excepção é uma de vidro, usada para mostrar como se processa a fermentação nas talhas.
Todas as uvas que entram nestas talhas vêm de vinhas com “pelo menos 25, 30 anos”, e as castas (“Antão Vaz, Roupeiro, Larião, Manteúdo e Diagalves, nos brancos, algumas quase extintas”, e “Trincadeira, Aragonez e Tinta Grossa, que é aqui da região, nos tintos”, enumera Luís) vão todas misturadas para as talhas — “No vinho da talha, as próprias vinhas é que têm a receita.” O vinho da talha X, por exemplo, é o que mais se assemelha ao do mestre Daniel, aponta Alda: “É feito na vinha que ele plantou há mais de 50 anos.”
A abertura das talhas
No dia de São Martinho, continuam a abrir-se as talhas e Vila Alva “é uma loucura”, diz Luís Garcia. As adegas que resistem abrem as portas — quem vai, leva a comida, o vinho é o “da casa”, novo. Cumpre-se o ritual de retirar o batoque (rolha) e colocar a torneira de onde vai jorrar o vinho para um alguidar de barro, “fica meia hora assim”. “O som, os cheiros, o pegar no copo e tirar directamente da talha, e cada talha ser diferente no sabor…”, descreve Luís Garcia, “esse é o espírito do vinho de talha. E por muito que engarrafemos e tudo o mais, viver o vinho de talha dessa forma faz toda a diferença.”
Na Herdade do Rocim, a versão desse dia é o Amphora Wine Day (que tem um spin-off: o Amphora Wine Tour) que desde 2018 reúne produtores nacionais e internacionais de vinho da talha numa celebração dessa herança milenar (e este ano até acontece precisamente a 11 de Novembro). Porque se a a Herdade do Rocim só nasceu em 2000, na propriedade, o Monte do Rocim ou Vale do Rocim, como era conhecido, a cultura do vinho é centenária — e o da talha também.
Na adega rústica, no monte da propriedade, por detrás da adega moderna, preservam-se as talhas de antigamente e o saber foi incorporado nos vinhos da marca que se tem destacado por ter lançado, por exemplo, o vinho Júpiter: estágio de quatro anos em talhas, mil euros a garrafa. As uvas vieram de uma pequeníssima parcela de 0,36 hectares (a Vinha Micaela) da propriedade que tem 120 hectares, 70 deles em vinha (privilegiam-se as castas autóctones, mas também há internacionais) a que se juntam “olival, amendoal, pomar de laranjeiras e uma série de pequenas árvores de frutos”, enumera Bruno.
Na pequena volta que damos pelas vinhas, biológicas, vemos o rebanho que costuma trabalhar nelas a descansar, a cegonha Emília no ninho e o Carlos e o Sousa, os cães que não se demovem do seu lugar de guardiães da adega velha. Mas é a adega “nova” o centro do enoturismo do Rocim — aqui fazem-se visitas, provas e até podemos ser “enólogos” com a experiência Vidigueira Master Blend. Nós embarcamos nesta: começamos por provar e cheirar, “o que o enólogo mais faz”, passamos pela mistura de castas (Aragonês, Touriga Nacional e Alicante Bouschet) até acertarmos com o blend que mais apraz o nosso gosto, e acabamos a engarrafar e rotular o nosso vinho. Terminamos no restaurante, vista para um pátio interior onde algumas videiras trepam, com um almoço vínico (necessita reserva), onde entram tábua de enchidos e queijos, doces de laranja e tomate, pão que vem em talegos, ovos com cogumelos e ovos de tomatada, secretos de porco, torta de batata-doce, tarte de amêndoa e outra de laranja, acompanhados por espumante Grande Reserva (rosé), Olho de Mocho Single Vineyard (branco e tinto), que vêm da vinha mais antiga, Grande Rocim (branco e tinto), “os melhores vinhos da herdade e que só são feitos em anos excepcionais”, e Dr Bruno, um clarete da Bairrada — a fechar, Ukelele, rum agrícola da Madeira produzido pela Rocim.
A Fugas viajou a convite da Herdade do Rocim