Vinho de talha, chouriços e as leis do Alentejo: João Carraça explica

Vinhos e enchidos viajam bem pelo país, mas o que os alentejanos querem é que a gente venha cá beber e comer com eles. Espertos. Bem-vindos a Vila Alva e à sua Cooperativa de Produção e Consumo.

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Temos com o chef Leopoldo Calhau certos assuntos que não permitem chegar a um acordo, o que é interessante porque quando discutimos aprendemos qualquer coisa. Um dos assuntos é o vinho de talha. Apesar de ter nascido e vivido quase sempre em Lisboa, Vila Alva (Cuba) — terra do pai — está na vida do chef desde o dia que começou a gatinhar. “Os meus níveis de felicidade disparam mal planeio um salto a Vila Alva”, diz ele.

Assim sendo, não compreendemos por que razão o chef não vende vinho de talha nos seus restaurantes quando há cada vez mais urbanos interessados em provar e beber vinho de talha. Responde-nos o ex-arquitecto: “O vinho de talha deve ser bebido e apreciado onde nasce, nas adegas, nas tabernas e nas casas de quem o faz, porque cada um, na Cuba ou na Vidigueira, faz o vinho da maneira como aprendeu com os pais e com os avós. Para se apreciar o vinho de talha é preciso sentir o espírito do lugar”. Nós costumamos dizer-lhe que a sua tese quase nos faz correr meia lágrima, mas, insistimos, não vemos onde está a incompatibilidade entre visitas a Vila Alva ou Vila de Frades e a venda e o consumo de vinho de talha em Lisboa, Porto, Londres ou Seul.

No dia 13 de Maio fomos os dois a Vila Alva, já que decorria a primeira edição do Vinho na Vila, que juntou na terra produtores de vinho de talha e produtores de outras regiões do país. Abalámos cedo de Lisboa porque tínhamos de chegar a horas de tomar o "chá das onze" com o pai do Leopoldo. "Chá das onze" ou "fazer as onze" é um ritual alentejano que consiste em passar por uma taberna por volta das onze da manhã para forrar o estômago antes do almoço. Hoje, o cerimonial está mais light (enchidos, queijos, pão, vinho e pronto), mas já nos aconteceu, em Vila Viçosa, "fazer as onze" com ensopados variados, coelho frito, galinha estufada e pezinhos de coentrada, tudo com vinho servido em copos de três e rematado com rábano vermelho porque, dizem os antigos, “dá cabo do colesterol em dois tempos”.

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Adiante. Na taberna de um familiar Calhau tivemos a primeira lição para sentir “o espírito do lugar”. Estávamos ao balcão e com uns enchidos à frente quando nos ocorreu perguntar a José Inácio, pai do Leopoldo, pelo número de habitantes da terra. Não sabendo com rigor, virou-se para trás e repetiu a pergunta a um ex-presidente de junta que estava a tratar de um prato de queijo, pão e meio jarro de vinho de cor dourada. Eis a resposta: “Nós por cá somos uns 450, lá em baixo, entre 80 a 100 e, cá em cima, pelas minhas contas, mais 200”. Perante a nossa cara em modo de ponto de interrogação, José Inácio Calhau auxiliou-nos: “Ah, pois, 450 são os que por cá estão, os 80/100 lá de baixo é a gente do lar e outros 200 são os que estão no cemitério. Como somos cada vez menos, contamos todos.” Em que outra parte do país se apresentaria a contabilidade demográfica nestes moldes? Em nenhuma, obviamente.

A partir daqui, de taberna em taberna, de prova em prova, foi tudo em crescendo, como naquela adega em que, num flash de idiotice nossa, perguntámos se havia algum recipiente para cuspir o vinho e o dono, com ar arreliado, perguntou: “Mas por que raio você havia de fazer um disparate desses?”

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E foi assim que, cirandando no labirinto de Vila Alva, entrámos na Cooperativa de Produção e Consumo Vilalvense, criada por trabalhadores rurais em 1978, que tem associada, nas traseiras, uma salsicharia especializada em linguiça, chouriço de vinho e chouriço de vinagre.

Quem gere a cooperativa e faz os enchidos é João Carraça (70 anos), que diz que os seus enchidos, resultantes de receitas que aprendeu em casa, “são do mais puro que há. Não levam um grama de pós para conservar ou dar sabor. Aqui só entra carne de porco de cá, sal, alhos picados por nós, colorau feito no Alentejo por gente da nossa confiança e com pimentos das hortas, vinho e vinagre do nosso. Tirando o sal e os cominhos, tudo o resto é daqui.”

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Apesar da felicidade na explicação dos seus enchidos, João Carraça faz questão de “ser honesto” e dizer que não usa porco preto alentejano “porque o dinheiro anda escasso e as pessoas têm que comer na mesma”.

Noutros tempos abatiam-se muitos porcos e borregos para venda na cooperativa, mas como há cada vez menos gente no Alentejo e a crise se instalou desde o século passado, a produção diminui. Ainda assim, diz João Carraça, num mês podem fazer uns quinhentos quilos. Depende da época. Pelas festas a procura cresce, no Verão desce por causa do calor e quando é tempo de favas há uma procura grande pelo chouriço de vinho.”

E onde é que podemos comprar estes enchidos? “Aqui, esteja à vontade.” Certo, mas, por exemplo, em Lisboa, vendem-se? “Sim.” Onde? “Ah, isso agora..., Bom, vem cá um rapaz carregar todas as semanas, mas não sei onde é que ele entrega. Parece-me que se vendem no Montijo. E alguns também vão para o Algarve. Mas olhe que, bom, bom é comê-los por aqui, aí numa dessas adegas, crus, assados ou num cozido de grão. O sabor é outro.” Claro, tinha que ser.

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Cinco minutos depois estamos numa adega onde se prova um branco de estalo e começa de novo a conversa de engarrafar ou não engarrafar para, na boca no anfitrião, acabar assim: “Se eu vendo todo o vinho aqui na adega e em Fevereiro já nem tenho nada (tive que guardar uma talha de propósito para este evento), porque é que me vou dar ao trabalho de engarrafar vinho? E outra: você não gosta de vir ao Alentejo?” Sim, sim, o mais possível. “Então, pronto, 'tá resolvido o assunto.”

Nós suspeitamos que os alentejanos não mandam para Lisboa e para o resto do país aquilo que têm de bom porque querem que a gente vá ter com eles, que coma com eles e que se divirta com eles (e só Deus sabe como nos divertimos), até porque, como é sabido, não há nada mais terapêutico nesta vida do que terras suavemente onduladas, interrompidas por montados e com flores a explodir nestes dias de chuva mansa. Estamos quase a dar razão a Leopoldo Calhau. Quase.

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