Os velhos são os mestres de Teresa Caeiro na arte de fazer vinho da talha
No São Martinho há muita talha para abrir e muita história para ouvir. Esta é a de quem dá a cara pelas Gerações da Talha, uma miúda de Vila de Frades que gosta de aprender com os mais velhos.
Teresa Caeiro é a cara do projecto Gerações da Talha, mas, em rigor, é a extensão do bisavô, do avô, dos pais, do irmão, dos amigos e de um conjunto de velhos que se passeia com vagar por Vila de Frades — gente que tem o vinho da talha na alma. Teresa andou no Instituto Superior Técnico em Engenharia de Minas e trabalhou em África. A dada altura percebeu que não estava destinada a andar debaixo da terra, pelo que, em 2019, regressou ao Alentejo para se casar, ter uma filha e participar na onda de recuperação de um vinho que é único. Estudou viticultura e enologia na Universidade de Évora, começou a encher as talhas na adega de família (já são 50 talhas) e, hoje, tem três referências no mercado: Natalha, Farrapo e Professor Arlindo, além do projecto de parceria com o fotógrafo Ricardo Garrido, o Tubarão na Talha, que é um petroleiro (palhete).
A formação em Évora foi importante, mas os melhores professores que teve e ainda tem são o avô Arlindo e os outros velhos com quem conversa regularmente. “Quando tenho alguma dúvida ou quando quero só ouvir histórias, vou ter com eles. Os velhos são os meus mestres. Aprendo imenso e divirto-me”, diz-nos.
Qualquer região vitícola é um somatório de factores físicos (terra, castas, clima e tecnologias) e humanos, mas, no caso do vinho da talha (não confundir com vinho ‘de talha’ que isso é ofensivo para os puristas) estes últimos contam muito. Fazer vinho da talha é só meter as uvas esmagadas e parte do engaço na talha, deixar a fermentação arrancar e rezar para que tudo isso não azede até ao dia de São Martinho. Sucede que, na prática, cada adega, cada adegueiro, cada velho de Vila de Frades e arredores ou cada alentejano que regressou a casa para recuperar as adegas do pai ou do avô tem a sua maneira de fazer o vinho da talha.
Atendendo a que o vinho é certificado (um grande avanço), há regras que são impostas e controladas com rigor, mas isso não impede que cada produtor tenha a sua maneira de interpretar o vinho. E, no Alentejo, é bom que ninguém interfira nisso. Castas, idade das vinhas, dimensões das talhas (com ou sem pez), tempos de fermentação, arrefecimento das talhas, trasfega dos vinhos, orientação da adega, circulação do ar na adega, todos estes factores contam para a definição do perfil dos vinhos. E isso é que é a beleza do vinho da talha: diversidade a partir de uma técnica milenar e romana — a fermentação em barro. Ah, e de intervenção mínima, já agora.
Nos últimos meses, temos cirandado entra a Vidigueira e Cuba por causa do vinho, por causa das histórias, porque nos sentimos em casa e porque o humor alentejano faz-nos bem (esse sim, devia ser património imaterial da humanidade). Quem chegue a Vila de Frades numa uma sexta-feira à noite e se deixe levar pela malta da terra verá que, ao regressar a casa, no domingo à tarde, mudou de feições e de espírito.
Seguindo o raciocínio, diga-se que o avô de Teresa Caeiro, o professor Arlindo Ruivo, é um dos responsáveis pela recuperação da cultura do vinho da talha. Conversar com ele é mais interessante do que consultar documentos históricos. Aliás, ele próprio, que se apaixonou pelo vinho da talha com o sogro (Francisco Anacleto), é um documento. “Sabe, eu tanto respeito os homens da ciência como aqueles que não estudaram coisíssima nenhuma, mas que têm um conhecimento empírico extraordinário. Você pode não acreditar, mas há homens por aqui que só de olharem para a orientação da entrada de um vespereiro ou de um formigueiro (se está para norte ou para sul) sabem se o ano será seco ou chuvoso. Agora estamos todos preocupados com as altas temperaturas, mas eu recordo-me, nos anos de 1960, dos homens que vinham dos barros de Selmes com ervas grandes para se fazer o ensombramento às vinhas, para as proteger do sol. Isso numa altura em que, aqui em Vila de Frades, as adegas se contavam por três dígitos. Agora são meia dúzia.”
Teresa assiste à conversa do avô enquanto controla o corte de uvas numa vinha de 40 anos, com castas naquele registo de tudo ao molho e fé em Deus (brancas e tintas) e que, em tese, lhe vai dar umas talhas especiais. Dizemos em tese porque, lá está, nunca se sabe bem o que vai acontecer dentro da talha. “Todos os anos temos grandes surpresas. Sabemos que há talhas que são mais regulares do que outras (pode ser da composição do barro ou da localização na adega, não sabemos), mas nada é adquirido. E é por isso que, em cada vindima, temos de avaliar talha a talha. Junto a família e uns amigos e avaliamos os vinhos. É assim.” Esta é uma tradição para se manter, mas não o caso do pagamento diferenciado entre homens e mulheres. “O meu avô Arlindo não sabe, mas eu, nesta vindima, paguei às mulheres o mesmo que pago aos homens porque, obviamente, assim é que deve ser”, diz Teresa, a sorrir.
O portefólio da Gerações da Talha explica-se rapidamente assim: os Natalha são mais frescos e mais leves, feitos a partir de uvas colhidas cedo e extracções curtas (15 euros para o branco e 17 euros para o tinto). Os Farrapo (os de Vila de Frades são conhecidos como farrapeiros porque os franciscanos vestiam-se com farrapos) são, digamos assim, os clássicos vinhos da talha (18/22 euros). E o Professor Arlindo é a homenagem da neta ao avô e é um tinto com mais extracção (36 euros). Esteve quatro meses na mãe (as partes sólidas do mosto que descem à base da talha) e nove meses a estagiar na talha. Se tivéssemos que eleger um, ele seria o Farrapo branco, por ser uma mistura perfeita entre a fruta das uvas e os aromas e sabores do barro e do pez, com boa acidez. É um belo vinho da talha. Um “vinho singular” que, como gosta de dizer Arlindo Ruivo, “deve ser apreciado com as janelas da alma bem abertas”.