Abusos sexuais: o que diria o Papa se ouvisse este jovem?
Ouvir um rapaz a dizer tamanha atrocidade faz-me remeter à necessidade extrema de intervenção junto da camada mais jovem da sociedade para dar a conhecer o fenómeno do abuso sexual e o seu impacto.
Pelo menos 4815 crianças e jovens terão sido alvo de abusos por parte de membros da Igreja Católica nos últimos 70 anos, embora saibamos que foram mais. Infelizmente, a Igreja não se colocou no imediato ao lado das vítimas, além disso, a conivência de muito altos responsáveis, através do silêncio, e a falta de frontalidade em assumir desde logo a pedofilia dentro do seu seio, apenas permitiu que actos hediondos continuassem a acontecer e a pôr outras possíveis vítimas em risco. Certo é que enquanto estes crimes forem recorrentes e mantiverem a impunidade dos agressores, as vítimas não terão paz.
Há ainda vítimas em profundo sofrimento e a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) representou para muitos uma oportunidade de pedir perdão pelo Papa Francisco. Certamente a acreditar que crimes hediondos são compreendidos por todos como tal, uma jornalista perguntou a um rapaz, que suponho ter entre os 15 e os 17 anos, se ele fosse o Papa o que mudava na Igreja Católica. Para meu total espanto, o jovem afirmou: “(...) Há certas coisas que não são os padres que fazem, são as crianças que, se calhar, metem-se a jeito.”
Note-se que não estou a generalizar, nem acredito que a maioria dos adolescentes pensa desta forma, mas ouvir um rapaz a dizer tamanha atrocidade faz-me remeter à necessidade extrema de intervenção junto da camada mais jovem da sociedade, para dar a conhecer o fenómeno do abuso sexual e o seu impacto nas vítimas, quebrando crenças distorcidas e perniciosas. Só assim poderemos evitar que as vidas de pessoas inocentes sejam destruídas.
Infelizmente, ideias como estas marcam a realidade de uma franja significativa da nossa sociedade, desde os mais velhos aos mais novos, muitas vezes sem sequer perceberem que apenas estão a contribuir para proteger os agressores. Isto revela uma total falta de entendimento deste fenómeno traumático e, sobretudo, de empatia pelas vítimas, que culmina na descredibilização do seu relato e do abuso em si, restando a lamentável culpabilização da vítima. Em consequência deste sentimento de desvalorização e da impunidade dos agressores, apenas 13% das vítimas denuncia o abuso nos meses seguintes ao seu acontecimento.
Embora a investigação sobre os efeitos do abuso sexual na infância tenha vindo a evidenciar danos psicológicos muito expressivos, que podem persistir ao longo da vida, nem todas as crianças que sofreram um abuso sexual irão revelar problemas de saúde mental e/ou física. Certo é que a maioria apresenta sintomas moderados a graves de perturbação emocional decorrentes da experiência de terror que vivenciaram e que deixaram marcas muitas vezes irreparáveis que contaminam toda a sua vida. Ou seja, há quem nunca sinta paz interior depois desta experiência.
A acrescentar que, sendo cometido por um adulto que tem entendimento da gravidade dos seus atos e do dano que está a causar, mas que, ainda assim aproveita-se da situação de vulnerabilidade da criança, torna-o absurdamente grave.
Os sintomas decorrentes do abuso podem incluir uma panóplia de reações traumáticas desde problemas de atenção e de desempenho académico ou profissional, perturbações emocionais como a depressão ou ansiedade, problemas de sono e de alimentação, doenças físicas, alterações comportamentais, dificuldades de autorregulação, problemas relacionais, sobretudo porque envolve a perda de confiança. O stress é constante, sobretudo quando o trauma é perpetuado pela sua continuidade no tempo.
Ao longo do tempo, o abuso sexual na infância associa-se a um elevado risco de psicopatologia, em especial, à perturbação de stress pós-traumático, abuso de substâncias, depressão, bem como a problemas de saúde física. Este crime pode ser, ainda, um fator de risco para o suicídio quando aliado a um conjunto de factores precipitantes do comportamento suicida e outras circunstâncias da vida da pessoa, como o apoio familiar limitado, a depressão, os problemas profissionais, etc..
As vítimas vivem o trauma do abuso com vergonha e culpa, chegando mesmo a acreditar que de facto pode ter sido sua culpa. Isto não é difícil acontecer, sobretudo nos mais novos que cresceram a ouvir as afirmações sobre “pôr-se a jeito”. Depois do abuso, em muitos casos, não são levadas a sério e são desacreditadas, tal como aconteceu dentro da Igreja Católica, que ocultou as agressões e descredibilizou as vítimas durante anos a fio.
Há uma forte necessidade de mudança social através da prevenção primária e da divulgação, desde os mais novos aos mais velhos, de informação fidedigna sobre o que é o abuso sexual, qual é o seu impacto nas suas vítimas, quais são os sinais de alerta, quais são os mecanismos de sinalização precoce face a uma suspeita, quais são os direitos das crianças em relação ao seu corpo e outras temáticas de reconhecimento e proteção individual.
Finalmente, urge um trabalho de protecção e de cuidados às vítimas, dando-lhes a oportunidade de serem acolhidas e tratadas. Existe evidência científica sobre o impacto positivo da psicoterapia em vítimas de trauma, então, há que proporcionar-lhes este direito.
Quanto aos agressores, é igualmente importante intervir e proporcionar-lhes acompanhamento psiquiátrico e psicológico por profissionais experientes nesta área, dado que estes não vão parar repentinamente o seu comportamento lesivo.
Basta de fazer de conta que está tudo bem porque o Papa Francisco esteve em Portugal e falou com algumas vítimas. A Jornada Mundial da Juventude acabou e as vítimas de abuso não podem voltar a ser remetidas ao silêncio.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990