Monitores contínuos de glicose: vale a pena comer de acordo com a minha glicemia?

A nutrição personalizada será sem dúvida o futuro, mas para isso é necessário saber crescer de forma cientificamente sustentada.

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O efeito mais pernicioso do controlo constante da glicemia pode ocorrer quando apenas se usa este critério para definir se um alimento é bom ou mau VLAYKO/Getty Images
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Cada vez mais se ouve falar da importância da nutrição personalizada e de alguns gadgets que poderão ser úteis para isso mesmo. Os monitores contínuos de glicose (MCG) são um deles e podem ser adquiridos facilmente através da Internet.

O MCG permite ver os níveis de glicemia através de um sensor aplicado no braço ou na barriga, avaliando o tecido intersticial. Estes resultados, que são partilhados para um transmissor e aplicação para o telemóvel, permitem saber em tempo real (pois são registados dados a cada 5-15min) a variação dos níveis de açúcar no sangue. No caso de grandes flutuações (hipoglicemias ou hiperglicemias), são enviados alarmes para que possam ser corrigidos.

A ingestão de hidratos de carbono e a interação com outros componentes de cada alimento/refeição como proteína, gordura, fibra e estado físico dos próprios alimentos determinam as variações dos nossos níveis de glicemia. O objectivo será sempre fazer escolhas que induzam respostas glicémicas ténues e moderadas, pois flutuações muito grandes (sobretudo diminuições acentuadas de glicemia) estão associadas a maior fome e aumento da ingestão calórica.

Dando exemplos práticos, a ingestão de uma refeição com mais fibra (bacalhau com grão vs bacalhau com batata) fará com que os níveis de glicemia aumentem de forma mais lenta com as leguminosas, em vez da batata. Quanto à atividade física, seja após um treino intenso, ou com apenas 20 minutos de caminhada após a refeição, observa-se sempre um efeito positivo na modulação destes níveis de glicemia, até pelo seu efeito positivo no stress (e hormonas associadas — adrenalina e cortisol) que contribuem para um aumento da resistência à insulina e doenças crónicas como diabetes, hipertensão e dislipidemia.

Tendo em conta todos estes factores e interacções, parece de facto interessante recorrer a um aparelho que consiga em tempo real fornecer os nossos níveis de glicemia. Em indivíduos com diabetes tipo 1, é mais do que óbvia esta necessidade, mas, mesmo em diabéticos tipo 2, esta monitorização contínua de glicose parece ser uma forma eficaz de controlar a hemoglobina glicada (HbA1c), sem utilização de insulina.

Em não-diabéticos, a utilização destes gadgets pode ter igualmente um efeito positivo (do mesmo modo que a monitorização do sono e calorias gastas no treino promovida pelos smartwatches), no sentido de aumentar a motivação para a alteração do estilo de vida, conhecendo o impacto que as suas escolhas alimentares e de exercício físico podem ter na glicemia. Pode ser também interessante perceber quando acontecem efetivamente hipoglicemias e a sensação de fome é “real”, contribuindo, consequentemente, também para um melhor controlo de peso corporal. No contexto de atletas profissionais, pode ser mais uma forma de saber qual o nível de “bateria” durante uma prova ou jogo e aqueles que podem estar num risco maior de fadiga.

O efeito mais pernicioso deste controlo pode ocorrer quando apenas se usa este critério para definir se um alimento é bom ou mau. Há uns meses, uma empresa que comercializa estes aparelhos nos EUA alertou para o pico glicémico derivado do consumo de mirtilos. Sim, leu bem. Um dos alimentos com melhor impacto global na saúde pode (segundo este prisma único de análise) ser desaconselhado e o mesmo pode acontecer com outras frutas que possam transitoriamente provocar um pico glicémico. Também o tipo de aparelho que faz estas avaliações pode dar respostas muito díspares, ainda que se trate do mesmo indivíduo consumindo as mesmas refeições, o que também indica que nem sempre estes valores podem ser encarados como uma verdade absoluta.

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Tendo em conta todos estes factores e interacções, parece de facto interessante recorrer a um aparelho que consiga em tempo real fornecer os nossos níveis de glicemia Getty Images

De facto, os diferentes padrões de glicemia após refeições podem influenciar a incidência de diabetes, doenças cardiovasculares e taxas de mortalidade. Além disso, a taxa de mortalidade por todas as causas de doença também parece ser maior, principalmente nos grupos em que existem mais picos de glicemia (30 minutos e duas horas após a refeição). Outro estudo realizado durante 11 anos, com 17 mil pessoas saudáveis, concluiu que o risco de mortalidade era praticamente constante até o valor 5,5% de hemoglobina glicada (média dos picos de glicemia no últimos três-quatro meses), aumentando de forma significativa o risco de morte a partir deste valor, principalmente por eventos cardiovasculares.

Outra questão perniciosa reside em estar em constante monitorização, preocupação e ansiedade das pessoas com respostas que são normais, que até já aconteciam antes (mas não eram monitorizadas) e que são influenciadas pelos factores mencionados anteriormente.

A nutrição personalizada será sem dúvida o futuro, mas para isso é necessário saber crescer de forma cientificamente sustentada. Para já, o presente é sinuoso, sobretudo quando está muito ligado a questões comerciais e à promoção do conflito constante das pessoas com a sua alimentação. Se a utilização destes monitores vier para ajudar, que assim seja, mas em primeiro lugar é preciso saber lê-los.

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