Fundo do mar

Tenho uma imaginação demasiado gráfica para o meu próprio bem. Uma notícia sobre um afogamento é o suficiente para me correrem à frente dos olhos imagens vívidas.

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A balaustrada da proa do Titanic encontra-se a 3840 metros de profundidade, a cerca de 650 quilómetros a leste da Nova Escócia Reuters/Arquivo
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A minha mãe não sabe nadar. Na praia, entra no mar muito devagar e molha-se, quando muito, até aos joelhos. Se a água lhe chega à cintura, o que terá acontecido meia dúzia de vezes, aflige-se e desata a respirar entre a boca e o nariz. Claro está que cresci com medo do mar.

Numa ocasião, no Norte de Espanha, teria eu 13 ou 14 anos, quase me afogava a tomar banho num rio. Estava rodeado de gente, mas aconteceu tudo tão depressa que não consegui gritar, levantar o braço a pedir ajuda, nada. Estava com água pelo peito, escorreguei numa laje e afundei-me. Senti os pés tocar no chão e, já com a cabeça submersa, dei um impulso e tirei-a da água. Uma golfada e voltei a afundar. Terei dado meia dúzia de saltos, até que consegui poisar numa laje mais alta. Três ou quatro pulos depois, estava com água pela cintura. Saí da água e corri para casa, deixando a banhos as dúzias de espanhóis que testemunharam, sem testemunhar, a minha quase ida para o fundo do rio.

O que melhor me lembro deste episódio é do silêncio debaixo de água.

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O mar Mediterrâneo tem sido palco de tragédias humanas que têm feito refletir muitos de nós sobre o desespero, os sonhos, a coragem, a fragilidade da vida e a urgência de soluções para uma das maiores crises humanitárias do nosso tempo.

Famílias inteiras fogem de situações de violência, conflitos armados, perseguições políticas, pobreza extrema e outras circunstâncias desesperantes, arriscando as suas vidas em embarcações precárias na esperança de encontrar segurança e uma vida mais digna.

Há relatos dramáticos de muitos sobreviventes que referem que fugiram com medo, que embarcaram com medo, que sobreviveram com medo e que continuam cheios de medo. Vidas dominadas pelo medo. Silenciadas pelo fundo do mar ou pelo repatriamento.

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Tenho uma imaginação demasiado gráfica para o meu próprio bem. Uma notícia sobre um afogamento é o suficiente para me correrem à frente dos olhos imagens vívidas de pessoas a esbracejarem desesperadamente na tentativa de se manterem à superfície ou de se agarrarem a qualquer coisa para se manterem à tona, enquanto se engasgam, tossem e gritam.

A dada altura, as pessoas ficam sem força para continuar a lutar.

Silêncio.

Demasiado gráfico?

Acontece todos os dias. E muitos dos afogamentos, como no caso dos migrantes, são, direta ou indiretamente, homicídios.

O silêncio no fundo do mar.

O mar tudo cala.

A geopolítica também.

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O Titanic, considerado uma obra-prima da engenharia e do design naval, afundou-se perto da Terra Nova (Canadá), na noite de 14 de abril de 1912, depois de colidir com um icebergue. Testemunhos de sobreviventes do naufrágio relatam gritos de pânico e de desespero enquanto o transatlântico se afundava. Bem como o momento de silêncio quase surreal subsequente ao afundamento do Titanic.

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No passado domingo, cinco homens embarcaram no submersível Titan e arriscaram, previsivelmente movidos pela curiosidade e desejo de aventura e de superação (entre outros, do fascínio pelo desconhecido ao interesse científico, especulo) e, imagino eu, com medo — eu teria; só de imaginar, já o sinto —, uma descida ao fundo do mar para visitar os destroços do Titanic, que se encontram a 3800 metros de profundidade.

Uma hora e 45 minutos depois do início do mergulho, numa altura em que o submersível já estaria a mais de 3000 metros abaixo da superfície, a comunicação com a superfície foi interrompida. O Titan implodiu. Foi rápido. (Sabê-lo, alivia-me)

Admiro os exploradores pela sua coragem.

E lamento o seu silêncio.

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Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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