Os órfãos da violência doméstica e os cuidadores ainda esquecidos pelo Estado

Os cuidadores, frequentemente os avós, permanecem esquecidos. As necessidades não se esgotam na intervenção psicológica para as crianças, é fundamental que sejam criados planos de apoio às famílias.

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"É preocupante que muitos não conheçam os seus direitos e não recebam apoio das instituições responsáveis" Nuno Ferreira Santos/Arquivo
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Entre 2004 e 2018, cerca de mil crianças ficaram órfãs. Em 2022, até novembro, 21 menores perderam a mãe em contexto de violência doméstica.

Tragicamente, ano após ano, dezenas de outras crianças e jovens ficam órfãos quando as mães são assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros. Cerca de um terço dos homicidas suicida-se e os demais são presos. Essas crianças são deixadas sem mãe nem pai. O que lhes acontece?

Uma parte significativa é cuidada pela família, principalmente pelos avós. No entanto, esses avós, que muitas vezes já são idosos, estão igualmente afetados pelo trauma e luto, um luto que se torna difícil de realizar, pois têm agora de cuidar de uma criança órfã.

Os cuidadores serão pessoas idóneas, o perigo cessou e já não existirá motivo para a intervenção do Sistema de Promoção e Proteção. O perigo terá cessado; no entanto, as necessidades destas crianças e destes cuidadores não se esgotam nos perigos previstos pela Lei de Crianças e Jovens em Risco.

Estes avós nem sempre possuem as condições necessárias para cuidar de crianças em tempo integral. São obrigados, muitas vezes, a escolher entre cuidar dos netos e manter o próprio sustento. Têm de reaprender a cuidar das crianças, passados 20 ou mais anos de o terem feito pela última vez, têm de lidar com o sistema de educação, o desenvolvimento da criança/jovem e as suas solicitações, bem como com outros desafios.

Em tempos, recebi um pedido de ajuda de um casal de idosos. Tinham cerca de 80 anos quando me procuraram. A filha havia sido assassinada anos antes e a criança começava a questionar os avós sobre as razões de a mãe e o pai não estarem presentes. Por que razão as mães e pais dos outros meninos e meninas os iam buscar à escola e os desta criança nunca apareciam? O que lhes tinha acontecido? Os avós não sabiam o que lhe dizer e então optavam por respostas evasivas ou pelo silêncio. A sua dor era avassaladora e o medo de dizer algo de errado à criança, forte de mais.

Os avós queriam apenas saber como falar com a criança, o que lhe dizer, e para isso procuraram o psicólogo. Estavam dispostos a pagar, apesar de não terem muitas condições. Nessa consulta, percebi também que nunca tinham recorrido à Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (1), nem sabiam o que era. Ninguém os tinha informado dos seus direitos, nenhuma instituição lhes deu apoio. Nem aos avós nem à criança. Será que estas pessoas, já tão fragilizadas, têm de pagar para obter estes serviços? Será que o Estado não tem responsabilidade de dar estas respostas e outras? Muitas vezes não foi o próprio Estado que falhou na proteção às vítimas?

Em 2021, para fazer face a uma das muitas necessidades identificadas, foram criadas as Respostas de Apoio Psicológico para Crianças e Jovens Vitimas de Violência Doméstica (RAP). Segundo a Comissão para a Cidadania e a Igualdade, desde a data de concretização do projeto, foram atendidas e acompanhadas 9977 crianças e jovens vítimas da violência doméstica. Este projeto, estruturante e pioneiro, está presente em todo o território nacional, com exceção da área metropolitana de Lisboa e Algarve e é financiado pelos fundos europeus.

Um outro projeto, este promovido pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) e ainda em fase de implantação, é o projeto A Teu Lado. O projeto tem entre os vários objetivos: apoiar e responder às crianças, no(s) dia(s) seguinte(s) ao episódio de violência doméstica registado pela polícia ou outro interveniente, em articulação com os seus familiares e criar um atendimento especializado a crianças que perdem seus pais ou representantes legais em resultado de homicídio no contexto de violência doméstica.

Este projeto é financiado pelos EEAGrants e está a ser desenvolvido na área metropolitana de Lisboa e Algarve, áreas territoriais não cobertas pelas RAP, e tem como parceiros, entre outros, as CPCJ, forças de segurança e as escolas. Estes projetos são essenciais para garantir respostas que não estavam previstas antes de 2021 e devem ser permanentes (não dependentes de fundos) e ser alargados a todo o país.

Os cuidadores, frequentemente os avós, permanecem, no entanto, ainda esquecidos. As necessidades não se esgotam na intervenção psicológica para as crianças e assim, para além destas respostas, é fundamental que sejam criados planos de apoio às famílias/cuidadores.

É preocupante que muitos não conheçam os seus direitos e não recebam apoio das instituições responsáveis. É importante que exista uma divulgação ampla dos recursos disponíveis para essas famílias e que sejam criados canais de atendimento e apoio permanente para que possam buscar ajuda de forma acessível e efetiva, sempre que dele necessitem.

É imprescindível que o Estado assuma a responsabilidade pelo desenvolvimento integral das crianças e famílias vítimas de homicídio em violência doméstica, evitando que se percam em processos burocráticos e falhas na concretização de políticas públicas efetivas. O suporte às famílias deve ser coerente e contínuo, desde o momento do homicídio até à autonomia das crianças, com especial atenção aos avós e cuidadores que frequentemente assumem essa responsabilidade. Pode ser necessário criar um Estatuto do Cuidador e da Criança Vítima do Homicídio em Contexto de Violência Doméstica, para garantir o apoio necessário a essas crianças e famílias, estabelecendo direitos e medidas concretas de suporte.

É fundamental que sejam disponibilizadas estruturas de aconselhamento, apoio financeiro e psicológico, tanto aos cuidadores como às crianças e jovens vítimas do homicídio em violência doméstica, até que atinjam a maioridade. Essas estruturas são essenciais para garantir que as famílias tenham condições dignas de vida e que as crianças recebam o suporte necessário para se desenvolverem na sua plenitude, o mais próximo possível das condições que as outras crianças e jovens têm. É importante destacar que essas estruturas podem ser geridas pela Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), sem a necessidade de criar outros organismos.

Se negligenciarmos essas famílias e cuidadores, estaremos a abandonar as crianças que são vítimas de homicídio em situações de violência doméstica. É crucial lembrar que essas crianças não podem ser privadas do direito a uma vida digna e saudável e da oportunidade de se desenvolverem plenamente e contribuir para uma sociedade melhor.

Os cuidadores das crianças vítimas do homicídio em violência doméstica são também vítimas da violência doméstica e, como tal, devem beneficiar do apoio da RNAVVD.


(1) A Comissão de Proteção às Vítimas de Crimes (CPVC) é um órgão administrativo independente responsável, por si ou através dos seus membros, pela concessão de adiantamentos de indemnização por parte do Estado às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, que funciona junto do Ministério da Justiça.​


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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