Sair do buraco

Um filme algo claustrofóbico, uma série de gente maluca e dois discos para fazer caminho(s). Sugestões para “apanhar ar”, já apetece.

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A Baleia, de Darren Aronofsky DR

Não me sai da cabeça que tenho de sair mais de casa. Não preciso de ir para muito longe, às vezes basta uma ida ao supermercado a meia hora a pé de distância, a focar os olhos e a mente mais longe, sem tirar o telemóvel do bolso. Funciona como uma bola anti-stress e a tensão arterial agradece. Passamos demasiadas horas fechados e isso faz com que em nós tudo engorde.

O filme A Baleia, de Darren Aronofsky, pode ser uma ilustração (exagerada) dessa falta de ar, começando desde logo pela forma como se apresenta: é gravado em 4:3, uma proporção já pouco usual que serve para reduzir ainda mais o espaço livre em volta do enorme Charlie, personagem que valeu o Óscar a Brendan Fraser. É um filme de um homem só e que vale precisamente por isso, como bem explicou Luís Miguel Oliveira na crítica que fez aqui no Ípsilon. O doce gigante de 272 quilos (Charlie tem obesidade mórbida e vive num pequeno apartamento) que mal se consegue mexer e sente a chegada da morte adia-a o que pode porque tem coisas para resolver. Também eu.

Uma delas é encontrar válvulas de escape mais eficientes para os dias cheios e “tóxicos”, numa dimensão terrena, portanto a milhas do que se pode ver em Succession, série premiada da HBO Max que entrou há pouco tempo na quarta e última temporada. A novela segue a vida de uma família estupidamente rica que combate pelo protagonismo e liderança — moral e material — no grupo empresarial liderado pelo patriarca Logan Roy (muito bem interpretado por Brian Cox), uma escória de gente que fala depressa e mal, o que parece fácil mas não é. Não sei se é uma das grandes séries da década, mas já me levou a fazer noitadas para apanhar o terceiro episódio. Está tão bem escrita e embrulhada que merece todos os prémios.

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Succession

Quem também merece um prémio (!) é o algoritmo “diabólico” do Spotify, pois é rara a vez que não acerta. Além das já bem conhecidas “Descobertas da semana” e “Radar de novidades” — ambas playlists automáticas personalizadas de acordo com os hábitos de escuta do ouvinte —, a empresa sueca dispõe de listas com curadoria humana. Na semana passada foi-me sugerida uma dessas (pelo algoritmo, lá está): chama-se “Oblique”, tem sete horas de duração e diz-se “angular, assimétrica e experimental”, termos vagos o suficiente para me fazer carregar no play da lista. Os algoritmos e a inteligência artificial andam nas bocas do mundo por razões tão extraordinárias quanto assustadoras, mas a “Oblique” faz prova de que as máquinas ainda têm caminho por fazer no que toca a bom gosto e sensibilidade. Mas talvez seja uma questão de tempo.

Ainda sem tirar os auscultadores, dois discos que funcionam também como pontos de fuga. O primeiro chama-se Stereo Mind Game e é o terceiro álbum do trio britânico Daughter. O consórcio é formado por uma inglesa, um francês e um suíço, e distribuído na Europa pela prestigiada 4AD, mais uma razão para que o estimado leitor, caso não saiba quem são, lhes dar uma oportunidade. O sucessor do também mui recomendável Not to Disappear (2016) segue a onda indie pop/folk com a inteligência e ritmo necessários para não nos deixarmos enjoar pela magnífica voz da vocalista Elena Tonra. Um belo disco para ouvir em viagem, numa dessas tais fugas, como uma que fiz há dias para esticar a corrente da moto, com o Alentejo como paisagem.

A segunda sugestão é boa para o mesmo percurso e para o chegar da noite. Let the Moon Be a Planet, de Steve Gunn e David Moore — guitarra e piano, respectivamente — é um disco instrumental calmo e muito bonito, onde as cordas e as teclas se cruzam num improviso que, adivinho, vai soar muito bem em espaços como o CCB ou a Casa da Música (fica a sugestão a quem trata destas coisas). Esta é a primeira da série Reflections, colaborações promovidas pela americana Rvng Intl., e junta Steve Gunn, ex-guitarrista dos The Violators, banda de suporte de Kurt Vile, com David Moore, a mente por detrás do colectivo Bing & Ruth (que também recomendo, oiça tudo o que puder). Não há casamentos perfeitos nem este é um álbum “sem espinhas”, mas é precisamente a imperfeição não disfarçada que lhe dá brilho.

É dessa luz que vale a pena alimentar os dias para desanuviar as nossas cabeças cheias de coisas. Bom para sair do buraco.

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