João Afonso: “Um vinho não se faz só com os cinco sentidos e uma sebenta da enologia”
O sector do vinho já pode dormir descansado porque Portugal tem um livro de castas, ainda por cima com muitas histórias pelo meio. É possível que João Afonso tenha publicado a obra da sua vida.
Ainda andava no Ballet Gulbenkian quando, nos anos 1990, começou a frequentar cursos de vinhos. Escreveu na Revista de Vinhos (colabora hoje na Grandes Escolhas) e publicou livros sobre a matéria, ao mesmo tempo que se tornava produtor, primeiro nas Beiras e depois na região de Portalegre, no Alentejo, na Quinta Cabeças do Reguengo, de onde saem vinhos com grande sentido de terroir. Aos 66 anos, João Afonso faz um livro (662 páginas, As Castas do Vinho) que qualquer amante de vinho tem obrigatoriamente de ter por perto. Para conhecer as 342 castas que estão registadas oficialmente em Portugal e para ler inúmeras histórias da vida do autor com a família e com o vinho.
Por que razão decidiste escrever este livro?
Ao fim e ao cabo, foi porque a riqueza e a diversidade das castas são uma coisa muito portuguesa e inexplorada. E, apesar de toda essa riqueza, o sector concentra-se numa dúzia de castas, pouco mais ou menos, deixando todo este património abandonado, mas mesmo muito abandonado.
Ainda hoje, com tudo o que sabemos, quer do ponto de vista da ciência, quer do ponto de vista da estratégia de diferenciação de vinhos face ao mercado global, consideras que esse património está abandonado?
Sim, sim. Felizmente que há malta nova que está a fazer vinhos de castas esquecidas. Nunca na vida imaginei que alguém — como o António Maçanita — fosse fazer vinhos no Porto Santo com a casta Caracol. É bestial. Agora — e como faço referência no início do livro — na portaria que regula as castas, com excepção de umas 30 castas, para o resto há muito pouca informação. Nalguns casos, nem sabemos sequer se existem nas nossas vinhas.
Como é que explicas que, a partir do extraordinário trabalho da Porvid, não haja maior interesse em explorar a tal diversidade que se conhece?
Vejamos, há pequenos produtores que já estão a explorar essas castas. E mesmo grandes empresas — caso da Sogrape e outras — sabem que todos os anos têm de apresentar produtos novos. Isto está em aceleração muito rápida. Alguma vez eu pensei que iria poder beber vinhos de Caracol, Listrão ou Diagalves? Nunca na vida. Estes vinhos não serão extraordinários, mas são bons e muito bem feitos, o que significa que há muita carta para dar, muita pedra para partir.
O facto de teres metido muitas histórias tuas no livro — e que acompanham a história recente da viticultura —, foi a vontade de não fazer apenas um livro de consulta?
Sim, porque não queria que isto fosse um livro apenas para se tirar dúvidas sobre castas, o que seria uma maçada. O livro tanto se lê por causa das castas, que estão arrumadas nas gavetas das regiões para facilitar a consulta, como por causa das minhas aventuras com a família pelo país.
Se tivesses que desenhar uma estratégia para incentivar a plantação de castas autóctones, por onde começavas?
Daria como exemplo o que o Maçanita, Márcio Lopes e outros estão está a fazer: agarrar coisas esquecidas e abandonadas para as trabalhar. E onde podemos ver o resultado de alguns destes trabalhos é num fim-de-semana no Porto onde tens Essência do Vinho, com vinhos que podem ir de 80 aos 100, e o Simplesmente Vinho — absolutamente obrigatório –, que é dos 0 aos 100. Aqui encontramos de tudo, vinhos em que a casta não interessa para nada — uns oxidados, uns difíceis, uns sem interesse e outros bons — e vinhos que resultam do trabalho da recuperação de castas. Pensando bem, o mundo do vinho nunca esteve tão divertido como hoje.
No teu projecto de Portalegre — Quinta Cabeças do Reguengo —, com quantas castas trabalhas?
São 12 castas de branco e 10 de tinto. E este ano estou a pensar fazer um vinho de uma casta que nem sequer está na portaria oficial, mas que existe em quase todas as vinhas velhas de região: a Tinta de Olho Branco.
Quantas garrafas fazes por ano?
Cerca de 24 mil garrafas, tudo de vinhas velhas. Mas isso não significa que não seja possível fazer-se grandes vinhos a partir de vinhas jovens. É tudo uma questão de equilíbrio entre produção, lenho, folha e uva.
Ainda há muito para explorar em Portalegre?
Eu diria que a resposta é 'nin'. Acima de tudo, e do meu ponto de vista, o que faz sentido é trabalhar em Portalegre com as castas que já cá estão há muito tempo e não com castas importadas de outras regiões.
A tua vida sintetiza-se em 15 anos no Ballet Gulbenkian e, desde anos 90, escrita e produção de vinhos.
Sim, ainda quando estava no ballet já fazia cursos na Estação Vitivinícola da Anadia e provas mais profissionais da Borgonha. Naquela altura eu era o que hoje se cataloga como wine freak. Éramos poucos.
Nunca foste tentado a fazer vinhos em diferentes regiões, como agora é moda?
Se tivesse menos 20 anos, ai isso faria de certeza, mas, agora, eu tenho é que me concentrar no projecto aqui em Portalegre, embora tenha feito há dois anos um vinho com Castelão de uvas que comprei em Palmela e que, pelo facto de ter sido feito em Portalegre, será um vinho IVV [apenas certificado pelo Instituto da Vinha e do Vinho; sem Denominação de Origem ou Indicação Geográfica].
Já fizeste vinho nas Beiras. Por que razão esta região, com as condições excepcionais que tem ao nível de solos, clima e castas, não descola?
Porque falta gente lá que tenha o sexto sentido. Um vinho não se faz só com os cinco sentidos e uma sebenta da enologia, faz-se com o sexto sentido — o feeling, que é uma condição fundamental para se fazer a diferença. Fazer vinho é pintar um quadro com as bases que tens na adega. É criar emoções. Como tal, isso exige alguma alma artística.