O Vinho dos Mortos e a lenda que vive em Boticas
Nuno Pereira é da terceira geração da família que mantém viva a tradição de enterrar o vinho no chão das adegas em Boticas e quer pôr no mapa a marca que o pai registou há 15 anos.
O vinho dos mortos é o vinho que os de Boticas enterravam no chão em terra batida — saibro — das adegas. A tradição remonta a 1808, quando as tropas do marechal Soult passaram por aquele território, cumprindo o plano de Napoleão de entrar em Portugal pelo Norte, e o povo, astuto, escondeu o vinho. Os Sousa Pereira são hoje (e há já alguns anos) os únicos a fazê-lo. O Vinho dos Mortos tem nova imagem e Nuno Pereira, terceira geração da família a produzir vinho (pensa que actividade terá começado com o avô), quer mostrar para lá das fronteiras de Boticas a marca que o pai registou em 2008.
O gestor de 42 anos, formado em Informática de Gestão (a sua principal ocupação é na empresa de software de gestão de que é sócio), lembra-se de "em pequenino", o pai, Armindo, o "enfiar para dentro das pipas para as lavar". Sempre esteve nas vindimas, conhece bem a vinha e a adega, apesar de viver em Braga. O Vinho dos Mortos está na sua história. Mas, depois de se formar na Universidade do Minho, o trabalho levou-o a viver 11 anos em Moçambique. Regressado em 2020, ainda o pai estava de saúde (dois acidentes vasculares cerebrais, em Abril do ano passado, prenderam-no à cama de uma unidade de cuidados continuados), começou logo a imprimir "outra dinâmica" ao negócio de família.
Há dois anos, encomendou um estudo dos solos barrentos e de cascalho das vinhas da família. E em 2022 atirou-se ao rebranding da marca, que tem a assinatura do designer Tiago Rodrigues. "Já estava a precisar de mudar." Trocou a garrafa bordalesa, "banal", por um formato cónico, mais "retro" e que chama a atenção nas prateleiras, substituiu o plástico pelo lacre no gargalo e, mais importante, mexeu no rótulo: caiu o guerreiro galaico-português, que "nada tinha que ver com o vinho dos mortos", e o foco passou a estar na marca, com uma fonte tipográfica que remete para os tempos das Invasões Francesas. "Em 1808, os franceses entraram pelo Norte de Portugal em direcção ao litoral. E aqui em Boticas o povo mandou os animais para o monte, escondeu os cereais e enterrou o vinho, para que as tropas não saqueassem tudo", conta.
Depois de as tropas de Napoleão passarem, a população "desenterrou o vinho e percebeu que este tinha adquirido propriedades distintas". Era um vinho palhete, menos alcoólico e "com um piquinho", gás natural, decorrente de uma refermentação, ocorrida já dentro da garrafa. Hoje, esse perfil (que, à excepção do gás, vai ao encontro das actuais tendências de consumo) é deliberadamente trabalhado pelo enólogo consultor Luís Rodrigues, que ora fala com Nuno, ora com a mãe deste. É Maria Hermínia, 72 anos, quem destina os trabalhos na vinha. E, muitas vezes, cumpre as indicações do enólogo na adega.
As vinhas — várias parcelas, num total que ronda os 2,5 hectares, a 400-420 metros, nas encostas de Boticas, onde chega o frio mas não a neve do Barroso — têm "mais de 80 anos" e são trabalhadas à mão e de mão na enxada. "Sempre foi assim", as "ervas são deixadas no meio do valeiro para fazerem o seu trabalho e deixarem os bichinhos fazer o deles", refere Nuno. Um pouco de Bastardo, Touriga Franca, Touriga Nacional, Tinta Roriz, Tinta Barroca, Tinta Amarela e, já em plantações novas, alguns pés de Alicante Bouschet, para "experimentar".
O vinho é só um, um regional transmontano com PVP de 15 euros e 12,5 por cento de teor alcoólico, que, diz a estatística da loja online que Nuno criou bem antes da pandemia (e onde é possível pagar com Apple Pay e Google Pay), tem mais sucesso a Sul — em concreto na Grande Lisboa — do que a Norte. É hoje feito em inox (as pipas na adega são hoje meramente decorativas) e engarrafado "quatro ou cinco meses após a vindima", depois é enterrado "durante seis, sete, oito meses".
No chão da adega, contígua à casa onde nasceu e cresceu o pai Armindo, o saibro cobre garrafas de várias colheitas. Nem Nuno sabe qual é a mais antiga ali escondida. "Não é só esta altura que vemos, há garrafas enterradas a vários palmos de profundidade." E num ambiente em que a temperatura ronda os 14 graus centígrados. Noutro espaço da casa cujo frontispício tem inscrito o ano de 1792, há cubas de 750 e 1000 litros, várias garrafas armazenadas que ainda hão-de ser enterradas e equipamento para mergulhar, à mão, e um a um, os gargalos no lacre.
A produção varia entre as 3000 e as 4000 garrafas por ano, a maioria fica cá. Não há propriamente exportação, mas o produtor envia para clientes particulares no estrangeiro. A vindima é tardia, "normalmente no primeiro fim-de-semana de Outubro, por aí". E as uvas são apanhadas com a ajuda da comunidade e uma mãozinha dos turistas que nessa altura andarem por Boticas. Esses dias são de festa: pequeno-almoço à transmontana, feijoada para o almoço, o Vinho dos Mortos, sempre, e, já no lagar, no final da pisa a pé, aletria acabada de fazer. A família Sousa Pereira recebe, por marcação, visitas na adega, que está inscrita na rota de enoturismo de Trás-os-Montes, e tem um alojamento local no centro de Boticas — no prédio onde a avó paterna de Nuno tinha uma loja e já em tempos idos se vendia o vinho dos mortos — e estabeleceu uma parceria com o Boticas Hotel Art & SPA, que fica colado ao Centro de Artes Nadir Afonso e também lhe encaminha visitantes.
O rebranding da marca foi apresentado na Feira Gastronómica do Porco, em Boticas, em Janeiro, e começa agora a chegar aos revendedores, que vão desde a loja rural da Cooperativa Agrícola de Boticas à Garrafeira Nacional. No futuro próximo, Nuno quer aumentar a área de plantação e multiplicar a presença em feiras e eventos vínicos (o pai só ia à do fumeiro, ali em Boticas). A família adquiriu mais um hectare de terreno, contíguo a uma das vinhas actuais, onde quer plantar mais videiras (para atar com folha de palmeira, como antigamente — Nuno também eliminou o plástico na vinha), e avalia agora a possibilidade de submeter, para o efeito, uma candidatura a fundos comunitários.
Depois da nova vinha, o sonho é ter ali nas encostas de Boticas "uma espécie de sala de provas onde se vejam as garrafas enterradas". "Uma das coisas de que o meu pai mais gostava na vida era o Vinho dos Mortos e ele sempre me disse: isto não pode terminar, tens de dar continuidade ao projecto."
Artigo actualizado a 03/03/2023, às 10h09, com o nome do designer responsável pelo rebranding da marca Vinho dos Mortos