Carbonara com natas? A boa comida é feita de memórias

Não me importava nada de me deliciar com uma massa à carbonara com natas, confecionada por Jamie Oliver ou Martha Stewart.

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Na origem, a receita de massa à carbonara não leva natas Rob Wicks/Unsplash

Muitos, só de ler o título, preparam o dedo vil para, na caixa de comentários desta crónica, exigir respeito por costumes e tradições, nomeadamente no que à gastronomia diz respeito. Cresci a ver os meus pais a abrirem a bíblia culinária da Maria de Lourdes Modesto e a seguirem a sua receita de bacalhau com natas. O livro tem manchas nas páginas mais utilizadas como prova do que afirmo.

Hoje, eu não sigo essa receita, mas outra encontrada no blogue de Clara de Sousa, que não imaginava eu, ter nos ingredientes, caldo Knorr de carne. “Sei que haverá muitas pessoas que vão torcer o nariz, porque consideram que o ingrediente não é dos mais saudáveis”, ressalva a jornalista. Mas o facto interessante nessa receita, como em todas as outras partilhadas, é a honestidade e a busca incessante por reavivar memórias de pessoas que lhe são queridas. Não interessa se vai agradar a a, b ou c. São as suas memórias do palato.

A comida — como um bom prato quente, algo tão simples como uma tomatada (tomate e ovos na frigideira), que a minha avó fazia — remete-nos para sabores únicos e inesquecíveis. Aquela meia de leite com café de cevada, acompanhada de uma torta a abarrotar de creme amarelo, comprada no minimercado, às quintas de manhã, é das minhas primeiras recordações, teria uns 5 anos. E se me perguntarem: qual é o teu prato preferido? Massa com frango (sem hesitações) assim à maneira bem tuga, com cenoura e pedacinhos de chouriço, muito tomate e claro esparguete. Um tio meu costuma dizer que fazer massa com frango com outra massa, sem ser esparguete, é destruir a iguaria.

Gostos não se discutem ou talvez se discutam. É por isso, que neste ambiente cada vez mais acirrado das redes sociais, também a gastronomia não passa ao lado do ataque. Jamie Oliver ou Martha Stewart já receberam muitas críticas por apresentarem receitas de massa à carbonara com natas, cuja cremosidade, segundo a tradição italiana, não necessita desse ingrediente, mas apenas de ovos, queijo e caldo da cozedura da massa.

Tenho curiosidade em perceber a origem de cada prato ou de cada produto tradicional, mas não me importava nada de me deliciar com uma massa à carbonara com natas, confecionada por Jamie Oliver ou Martha Stewart. Ficaria sempre na minha memória.

Recentemente, chegou-nos a notícia de que ao fim de 20 anos, o restaurante dinamarquês Noma, eleito várias vezes o melhor restaurante do mundo, com três estrelas Michelin conquistadas em 2021, irá encerrar no final de 2024.

O chef René Redzepi justificou que: “Manter o modelo de fine dining moderno, alicerçado num processo criativo e inovador constante e ao mais ínfimo pormenor, de trabalho intensivo e muito caro, é insustentável.”

Mas garanto-lhe, René, mesmo que o Noma encerre, boa comida é boa comida, não interessa se é feita num fogão digno de estrela Michelin ou na frigideira velha que insistimos em guardar no forno. Cozinhar é um dom insubstituível. Daí que sintamos saudades das pessoas e do que elas cozinhavam para nós. Ninguém faz ou fará igual.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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