O Natal é um jogo de emoções perigosas
O Natal é uma época em que a sociedade nos obriga a ser felizes, contentes e alegres. Mas quem está triste sofre a dobrar.
Era um médico muito novo quando comecei a trabalhar no INEM, na Viatura Médica de Emergência (VMER), que era o meu maior sonho, até então, na carreira: sentir que fazia parte de um sistema, uma equipa que, contra a natureza, consegue que algumas pessoas vivam mais uns tempos.
Em termos clínicos, a aprendizagem é imensa, porque estamos sozinhos na rua ou nas casas, com decisões clínicas de vida ou de morte, tomadas em segundos e sem uma equipa com quem partilhar os juízos.
Mas há também uma aprendizagem sociológica marcante ao entrarmos em qualquer tipo de casa, de ricos ou pobres, e sermos recebidos inevitavelmente por famílias num turbilhão de emoções pela preocupação de alguém que está com falta de ar extrema, sinais de enfarte ou de AVC, perda de consciência ou no limite, em paragem cardiorrespiratória. E foi no Natal, foi ao trabalhar nos dias de Natal, que me apercebi de algo que é duríssimo.
Trabalhar no Natal é especial. Estamos tristes pelo que estamos a perder, mas com um gostinho especial por passar o Natal com a nossa família do hospital e ajudar pessoas que de nós precisam num dia tão especial, onde todas as emoções são a triplicar. E era disso que eu gostaria de falar. De emoções.
Foram vários Natais, ou parte deles em que trabalhei na VMER e aconteceu-me imensas vezes esta situação-tipo, de uma vítima “inconsciente”. Somos activados com pouquíssima informação clínica e uma morada. Enquanto vamos a alta velocidade, vamos a tentar pensar no que possa ser e no que se poderá fazer. “Inconsciente” pode ser muita coisa. Pode ser uma hipoglicemia, uma epilepsia grave, um AVC, uma intoxicação por álcool ou medicamentos, entre outras.
Com esta informação entramos na casa da pessoa a correr, em stress, com mais ou menos gritos da família como “música” de fundo, e vamos a correr para o doente. E o diagnóstico desta situação-tipo natalícia foi dezenas de vezes o mesmo, que me deixa tranquilo como médico, mas muito triste como ser humano: “não tem nada”.
Pode-se dizer que está a fingir, há quem lhe chame uma crise conversiva, uma somatização ou uma histeria. Homens e mulheres, sejam velhos ou novos, têm este tipo de reacção a uma tristeza extrema. O Natal é muito duro para quem está triste. Do ponto de vista clínico costuma ser fácil ver que “não é nada”. E depois, não sendo psicólogo, vai-se desmontando as razões para este sofrimento emocional extremo.
A tristeza Natalícia. O Natal é uma época em que a sociedade nos obriga a ser felizes, contentes e alegres. E para a maioria assim o é. E ainda bem. Mas quem está triste sofre a dobrar. Quem não tem bacalhau sofre a dobrar. Quem não tem presentes para dar aos filhos sofre a dobrar. Quem não tem com quem festejar sofre a dobrar. Quem está chateado com a família ou amigos sofre a dobrar. Todas as emoções a dobrar ou a triplicar.
Se me permitem a sugestão: estejam atentos. Esta "obrigação" de ser feliz leva muita gente a estados de tristeza extrema. Ajudem quem precisa. Acrescentem quem está sozinho. Aproximem-se dos que ficaram distantes, façam as pazes. E lembrem-se dos que estão tristes... podem-lhes salvar a vida.
A tristeza é uma bomba-relógio, quando está toda a gente feliz. E, se conseguirmos fazer feliz uma pessoa que estava triste neste dia, é a maior conquista natalícia que se pode ter. Por vezes, basta uma mensagem ou um telefonema a dizer: “gosto de ti.”
Espero que tenham um Feliz Natal. E que façam com que o Natal seja feliz para quem está triste.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras