Fotografia
As estranhas criaturas que povoam, desde tempos ancestrais, as ilhas italianas
Alys Tomlinson mergulhou nas tradições, mitos e folclore italianos e trouxe consigo The Islanders, o retrato dos diabos, fadas e criaturas das celebrações de origem pagã que ainda decorrem nas aldeias remotas da Sicília e Sardenha.
Ao longo do período de dois anos, entre 2019 e 2021, a fotógrafa Alys Tomlinson documentou um mundo que oscila entre o real e o imaginado. Nas grandes ilhas da Sicília e da Sardenha, a britânica mergulhou em profundidade nas tradições, mitos e folclore italianos e trouxe consigo o retrato dos diabos, fadas e criaturas que participam das celebrações de origem pagã que ainda decorrem nas aldeias remotas desses territórios.
Alys é fascinada por temas que são intemporais, “por personagens que podíamos ter conhecido nos nossos sonhos, pesadelos ou na nossa imaginação”, pode ler-se no comunicado enviado pela editora Gost ao P3, que cita a fotógrafa. “Ao realizar este projecto, fui recordada dos contos de fadas e histórias da minha infância.” O fotolivro The Islanders, ou Os Ilhéus, em tradução livre, reúne todas essas características: revela ao mundo seres de aparência onírica que deambulam pelas ilhas italianas há muitos séculos, celebrando deuses e elementos naturais e personificando os “guerreiros” que travam a inextinguível batalha entre o bem e o mal.
Foi em Veneza, a serviço da Time Out, que Alys pensou pela primeira vez desenvolver um projecto em Itália, mais especificamente em torno daqueles que visitam o cemitério que ocupa a ilha inteira de São Miguel. Esse trabalho nunca chegou a arrancar, mas outro estaria para nascer. “Comecei a procurar festivais e celebrações que decorrem em Itália durante a Semana Santa”, conta ao P3, em entrevista a partir de Londres. “E percebi que existia, evidentemente, muita coisa a acontecer.”
Para satisfazer a sua curiosidade, Alys começou a investigar os rituais e celebrações italianos – e foi assim que deu por si debruçada sobre o livro de Italo Calvino Fábulas Italianas, que reúne 200 contos populares daquele país. “A leitura do livro conduziu-me a diferentes partes de Itália; comecei, então, a perceber que muitos dos rituais se expressavam através do traje.”
A maioria das imagens que figuram no fotolivro, publicado em Novembro de 2022 pela editora Gost, foi realizada na Sicília e na Sardenha – aquelas que excedem a regra foram tiradas nas ilhas abandonadas de Veneza. “Os venezianos podem ser muito fechados, conservadores. O sul, por sua vez, é um mundo selvagem, indomável, onde a autoridade não colhe e onde as tradições têm raízes muito profundas nas comunidades.”
Alys não esteve efectivamente presente nas celebrações para a realização do projecto. “Tudo isto aconteceu durante a pandemia, altura em que todas as celebrações foram canceladas”, justifica. Em todo o caso, fotografar durante as celebrações “teria sido caótico”, “nunca resultaria”, avalia. “São festas muito hedonísticas, há pessoas a beber imenso, grandes fogueiras, fogos-de-artifício, muita dança.” O trabalho da britânica requer calma, serenidade, e por isso Alys convidou as pessoas das aldeias a posar com os trajes durante esse período. A sua iniciativa foi muito bem acolhida entre as populações. “As sessões transformaram-se em pequenos eventos. As pessoas estavam ansiosas por vestir os trajes durante a pandemia.”
As fotografias, realizadas com recurso a uma câmara de grande formato 5x4, transmitem serenidade (característica da sua assinatura fotográfica) e, ao mesmo tempo, inquietação. “Algumas das personagens, sobretudo femininas com ar angélico e belos trajes, representam o bem e a pureza. Outras, muito sinistras, representam os espíritos malignos, os demónios. Achei isso muito interessante, como cada aldeia inventou as suas próprias personagens para representar os diferentes elementos da natureza humana.”
Não é possível, no entanto, determinar o que cada uma das personagens retratadas representa. “Todas as narrativas criadas em seu torno são contestadas”, explica. É comum existirem várias interpretações. “Conheces alguém num bar que te diz que aquela personagem representa a terra e o poder dos pastores no controlo dos seus rebanhos; outra pessoa dirá que não, que representa o poder da natureza sobre o Homem”, exemplifica. É por esse motivo que as legendas das imagens contêm pouco mais do que referência ao local onde foram realizadas – para evitar imprecisões e controvérsia.
Controvérsia, sim, porque as populações das aldeias “têm um orgulho imenso” nas suas tradições; a eleição de uma interpretação em detrimento de outra poderia ferir susceptibilidades, discorre Alys. “Ouvi vezes e vezes sem conta ‘a tradição está-nos no sangue’.” A britânica verificou que sim, que a tradição se mantém ainda muito viva nas aldeias italianas das duas grandes ilhas. “Fiquei muito surpreendida com a quantidade de pessoas jovens que se entusiasma e se envolve nas celebrações.” O envolvimento nos rituais é um costume que passa de geração em geração – o mesmo aplica-se a muitos dos trajes que foram fotografados, que já pertenciam a avós, bisavós, trisavós das pessoas que Alys retratou.
Alys sentiu, no terreno, que paira sobre as aldeias o medo de que as tradições se extingam, devido à migração da população jovem para as grandes cidades. “São aldeias muito, muito pequenas, remotas, onde todas as famílias vivem na mesma rua e toda a gente se conhece”, descreve a britânica. “As oportunidades de trabalho nas ilhas são muito limitadas, por isso muitas das pessoas que retratei ainda trabalham na terra, são pastores, agricultores. Mas existe a questão de quanto tempo isso irá durar.” Estas celebrações são muito importantes na estrutura das comunidades. “Todos estão a tentar agarrá-las, para que não se extingam, mas tudo depende das futuras gerações.”