O epifenómeno da fragmentação da atenção

A atenção é cada vez mais solicitada por elementos de distração e interruptores de atenção de todos os tipos.

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As crianças têm um horário tão preenchido que "não permite a assimilação nem a metabolização da informação" Patricia Prudente/Unsplash

O mundo em que as crianças crescem carateriza-se por um tipo de atenção acelerada, efémera, fugaz, fragmentada, volátil e altamente distrátil. E esse tipo de atenção é duplamente incentivado, de forma intensiva e extensiva: intensivamente, provocamos uma hiperestimulação da atenção concentrada no tempo, caraterizada pelo pensamento rápido; extensivamente, prolongamos a fragmentação da atenção, passando e fazendo passar as crianças de umas atividades para outras, de uma forma apressada, que altera própria perceção serial da passagem do tempo.

O primeiro tipo de atenção, marcada pela intensidade, é bem visível, por exemplo, no ecrã da televisão, no qual se espelha e, ao mesmo tempo, se cria uma realidade caraterizada pela hiperatenção. Nesta realidade, o espetador é hiperestimulado para se focar, em simultâneo, em diversos estímulos, que concorrem entre si pela sua atenção, contribuindo necessariamente para a fragmentação da mesma. Parece que virou moda a multiplicidade de informação difundida em simultâneo pelas cadeias televisivas, com o ecrã tripartido, apresentando três imagens ao mesmo tempo. Isto, para não falar das notas de rodapé que passavam ininterruptamente, acrescentando a todo o momento novas informações às anteriores.

Este é apenas um exemplo, entre muitos outros, elucidativo do estilhaçamento intensivo da atenção concentrado no tempo, ao qual poderíamos acrescentar a realização de tarefas em simultâneo, como falar ao telemóvel enquanto se responde a e-mails ou receber chamadas do trabalho enquanto se toma conta dos filhos. Estes podem parecer distraídos, mas estão a prestar atenção e a ser modelados por esta realidade, que é aquela que melhor conhecem.

A questão é que o fenómeno da aceleração da atenção se prolonga extensivamente no tempo, enquanto se passa sucessivamente de uma atividade para a outra, sem as tão necessárias pausas e tempos de descanso, como se não houvesse um amanhã. Neste domínio, a vida das crianças não fica atrás da dos adultos, nem em número de atividades nem em tempo despendido na sua realização, com um horário tão preenchido que não permite a assimilação nem a metabolização da informação.

Mas depois, em contrapartida, parece que ignoramos esta realidade e surpreendemo-nos com as dificuldades das crianças ao nível da atenção, criticando-as por não prestarem atenção a nada, como se esse epifenómeno, visível nas gerações mais jovens, tivesse nascido por geração espontânea, sem qualquer ligação com a realidade em que vivemos. Será que, afinal, somos nós que andamos distraídos? Ou que somos inconsistentes entre aquilo que estamos a dar e a pedir às crianças?

Os fenómenos identificados estão relacionados com uma preocupação transversal à escolaridade, que tem impacto na qualidade das aprendizagens: a dificuldade com o foco e a manutenção da atenção. E não, não estou a falar da perturbação da hiperatividade e défice de atenção, devidamente diagnosticada, que afeta algumas crianças. Esse não é o tema deste artigo. Estou a falar de outro fenómeno não menos interpelante, já que atinge um número muito mais representativo de alunos, que (sem um diagnóstico) manifestam dificuldade em focar a atenção e, mais ainda, em mantê-la focada, parecendo distrair-se com tudo quanto mexe à sua volta.

Este frenesim constante que nos é apresentado como um produto do progresso da civilização corresponde, segundo o filósofo Byung-Chul Han, a um retrocesso civilizacional: “A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso da civilização”; trata-se antes de um retrocesso, correspondendo a uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem. Também o médico e cientista Lamberto Maffei elogia os benefícios da lentidão e defende que “uma excessiva prevalência dos mecanismos rápidos do pensamento, que designamos por ‘pensamento rápido’ pode implicar soluções e comportamentos errados, danos na educação”, lançando um convite para “reconsiderar as potencialidades do ‘pensamento lento’, baseado principalmente na linguagem e na escrita”.

Para o psiquiatra Cristophe André, a sociedade contemporânea não ajuda em matéria de capacidades de concentração e de absorção numa tarefa. Pelo contrário, a atenção é cada vez mais solicitada por elementos de distração e interruptores de atenção de todos os tipos, o que “implica que sejamos resistentes para que as nossas capacidades de atenção e de concentração não se desagreguem sob o ataque cerrado de todas estas solicitações”, criando condições para o aumento das dificuldades relacionadas com a atenção. “Podemos perguntar a nós mesmos se o aumento de perturbações da atenção das crianças (e mesmo de certos adultos não resulta, em parte, dessa mutação social. Não que a sociedade crie estas patologias ou desequilíbrios (que nem sempre são doentios), mas é provável que os estimule entre as pessoas cujas capacidade de concentração são menores”.

Chul Han vai mais longe ao atribuir ao excesso de estimulação a responsabilidade pela fragmentação e até pela destruição da capacidade de atenção: “O excesso de positividade manifesta-se como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura e economia da atenção. Com isso se destrói e fragmenta a atenção.” De acordo com a sua análise, estamos a assistir a uma deslocação de um tipo de atenção profunda para uma forma de atenção radicalmente distinta, a hiperatenção, que se carateriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos.

A fragmentação continuada da atenção, exacerbada pela hiperatenção, traduz-se, segundo Chul Han, num fenómeno de perceção serial, incapaz de experimentar a duração: “A perceção serial como captação continuada do novo não se demora, não se mantém. Em vez disso, corre apressada de uma informação para a seguinte, de uma vivência para a seguinte, de uma sensação para a seguinte, sem nunca finalizar nada.” É precisamente esta “exacerbação patológica da perceção serial”, que nunca descansa e desaprende a demorar-se nas coisas, que este filósofo considera estar na génese das dificuldades ao nível da atenção.

Nesta perspetiva, poderá fazer sentido focarmos a nossa atenção na seguinte questão: o que podemos alterar na realidade que temos para oferecer às crianças, de modo a favorecer o desenvolvimento de uma atenção mais estável, consistente, profunda e duradoura?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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