Nasceu em França, mas cedo regressou a um Portugal profundo, o minhoto, onde testemunhava como os meninos com maiores dificuldades na leitura e na escrita eram “tratados muito mal”. Foi com dúvidas que Clara Gomes decidiu ser professora, mas foi cheia de certeza que escolheu o ensino especial e é especialista em perturbações de leitura e escrita. Nesta segunda-feira lançou, na Escola Superior de Educação Paula Frassinetti, no Porto, o protótipo do videojogo Piratas dos Sons, a pensar nas crianças, entre os quatro e os seis anos, com dislexia. Hoje assinala-se o Dia Internacional da Dislexia.
Clara Gomes conta ao PÚBLICO que nunca esqueceu que “o que gostava mesmo era de ensinar a ler”, especialmente crianças com dificuldades. Depois de tirar uma pós-graduação em educação especial, decidiu que ajudar alunos com dislexia “era o que queria fazer para a vida toda”.
Em 2016, no âmbito do seu doutoramento em Ciências da Educação, começou a desenvolver aquele que viria a ser o Pirata dos Sons, um jogo que é o primeiro validado cientificamente em Portugal. Fruto da sua pesquisa e de um trabalho no terreno onde testou o jogo numa amostra de cem alunos, a professora afirma que os resultados do estudo foram positivos.
“Consegui comprovar que o grupo experimental que participou no projecto conseguiu ganhos muito superiores quer na leitura, quer na compreensão, em relação às crianças daquelas idades e daquelas turmas que não tinham beneficiado do jogo”, resume a investigadora sobre os três anos em que desenvolveu e pôs o jogo em prática.
Identificar e manipular os sons
As melhorias na capacidade de leitura advêm do trabalho de uma competência essencial que é desenvolvida antes de a criança aprender a ler: a consciência fonológica, explica. Esta consciência baseia-se na aprendizagem de que as palavras são formadas por vários sons que podem ser separados e reorganizados.
“Quando diagnosticamos uma dislexia, estamos a falar de um problema nesta área da consciência fonológica, ou seja, uma incapacidade que a criança tem de identificar e manipular os sons”, continua a autora do jogo. Assim, o jogo pretende actuar precocemente, podendo ser jogado por qualquer criança, sendo que o diagnóstico de dislexia, segundo a especialista, só pode ser feito dois anos depois de aprender a ler, normalmente, no final do 2.º ano de escolaridade.
“No final do 2.º ano, a criança devia estar a ler 90 palavras por minuto. E se estiver a ler abaixo de 30, por exemplo, nós podemos dizer que há um grande atraso em relação ao que é suposto para aquela idade”, diz.
Para trabalhar a leitura em fases mais tardias, a professora já tinha lançado a aplicação Speed Reading, que permite aos utilizadores ler textos e perceber quantas palavras por minuto estão a ler, através de um conversor de voz para texto integrado na aplicação.
Ser um pirata
Construído originalmente como jogo de tabuleiro, o Pirata dos Sons é agora adaptado para o formato de videojogo disponível para computador e telemóvel. Esta mudança, segundo a especialista, foi feita de modo a “aproximar o jogo aos contextos digitais” mais prevalentes nesta faixa etária e, também, “para estar ao alcance de qualquer um a qualquer momento”.
Para completar o jogo, a criança encarna a personagem de um pirata que, na versão final, terá uma versão feminina, e tem de percorrer as oito ilhas que compõem o mapa do videojogo. Para passar de ilha para ilha, tem de responder correctamente às perguntas que as personagens lhe fazem. Pelo caminho, vai trabalhando o seu conhecimento dos sons.
“São perguntas como ‘Quantas silabas tem a palavra pato?’ e a criança tem de dizer que tem duas sílabas”, exemplifica Clara Gomes que dá voz à personagem principal, a pirata Claire.
O último nível, o mais difícil, o jogador tem de indicar quantos sons tem uma palavra, trabalhando a vertente da consciência fonética. Segundo Clara Gomes, este nível inclui perguntas como “Quantos sons tem a palavra chá?”, a que a criança tem de responder: dois, o “ch” e o “á”. “Quando a criança tem esta última dimensão adquirida, já está a aprender a ler sem que ninguém lhe ensine”, declara.
Para a professora, este trabalho que as crianças fazem ao jogar é essencial, não só para a redução da percentagem da população com dislexia e perturbações na aprendizagem da leitura, mas também para “evitar o insucesso escolar e, depois, o abandono escolar”.
Texto editado por Bárbara Wong