É preciso sair da ilha para ver a ilha
Título roubado a Saramago, de O Conto da Ilha Desconhecida. A ilha deste livro é conhecida de dentro e tem nome: Terceira. Foi daí que uma menina e uma cadela saíram. No entanto, continuam lá.
Ficámos a saber que a ilha de O Som das Coisas Leves quando Caem é nos Açores porque a autora nos revelou. Não é dito na história. Também partilharam connosco, Catarina Ferreira de Almeida e Sérgio Condeço (ilustrador), que há uma amizade que os une.
Depois de mais de dez anos a viver na ilha Terceira, a autora e a sua cadela, Jasmim, atravessaram pelo céu parte do Atlântico, rumo ao continente. Conta-nos a autora como foi “chegar” aqui: “‘Chegar’, pensei eu, não era uma coisa que se fizesse em duas horas. As pessoas viram-nos chegar, com as nossas malas, ao aeroporto. Mas nós não sentíamos que tivéssemos chegado. Chegar ia levar muitos dias, muitas semanas, talvez meses.” Depois, numa manhã, escutou a “brincadeira” de Sérgio Condeço: “Tu e a Jasmim ainda não chegaram a Lisboa. Estão as duas no meio do mar, num pequeno bote, a remar.”
Ficou a pensar no que ouviu: “Na travessia. No que seria fazer a viagem até ao continente, pelo alto mar, vendo a ilha a desaparecer ao longe, cada vez mais pequena. E, muito depressa, comecei a ouvir as vozes da menina e da sua cadela, Jasmim, a conversarem uma com a outra acerca do que podiam e não podiam levar dentro do barco. Meia dúzia de objectos ou as encostas verdes das montanhas, onde se projectavam as sombras dos pássaros? Uma araucária de 23 metros de altura ou um rebento triste no fundo de um vaso? Três caixas de pastilhas elásticas ou uma boa dose de coragem? Talvez fosse melhor levarem a coragem”, diz ao PÚBLICO por e-mail.
A decisão sobre o que levar é muito bem descrita no livro, de uma forma até poética: “Tinham de escolher com cuidado, porque dentro do barco não cabia tudo. E, se levassem peso a mais, ainda iam ao fundo. Havia coisas que não pesavam nada, mas ocupavam muito espaço. E outras que nem se viam, mas pesavam toneladas.” A mãe ainda lhe disse que ela não pedia levar o seu mau feitio. “Enche a casa toda (…) não cabe num pequeno barco.”
Uma tela em cada página
O ilustrador também nos desvenda como abordou este trabalho: “Comecei o processo criativo com certezas sobre como queria ilustrar este livro, mas com uma enorme angústia, maior do que a habitual. Já conhecia a atmosfera da ilha, que me tomou, e deixei-me transportar por ela”, descreve. E acrescenta: “Queria um registo próximo ao realista, mas algo deformado, mais pastoso e que parecesse uma tela em cada página. Após duas ou três tentativas frustradas, apanhei aquilo que queria e segui. Peço ajuda a amigos, pergunto ao meu marido se gosta. Nunca tenho completa certeza do que faço.”
Sobre a técnica, recorda: “Primeiro, usei tinta acrílica sobre papel e depois digital. A Catarina tem no final umas caixas de textos para além da história. Aí, recorri aos esboços e até a nódoas de tinta, resultado do processo de dois meses intensos.” O efeito é bonito.
Sérgio Condeço diz ainda que quis dar à ilustração “um compasso mais lento, reforçar o lado poético e quase triste que o texto revela”. Funcionou.
Ambos conseguem pôr-nos na ilha “que nunca está no mesmo sítio” e lembrar-nos de que há coisas que só podemos levar no pensamento.
Conclui a também tradutora, menção honrosa do Grande Prémio de Tradução Literária APT, em 2016, pela tradução de Longe da Multidão, de Thomas Hardy (Presença): “Mudar (lembro-me imediatamente de Ana Ventura e do seu magnífico Mudar [Prémio Nacional de Ilustração 2021]) é ser capaz de se chegar inteiro a um outro lugar. E, durante muito tempo, desse outro lugar, chega-nos apenas um som quase inaudível, o som das coisas leves quando caem, que é, antes de mais, um som imaginado.”
Que este seja um texto de boas-vindas ao continente — às personagens dentro e fora do livro.