Da Presidência da República?!

O ser humano em sociedade é resultado de inúmeros encontros, interações, estímulos, vontades, necessidades, não necessariamente por esta ordem de prioridade.

Foto
Ontem, percorri 32 km desde Vila Franca de Xira DR

— Boa tarde, estou a falar com João da Silva?

O próprio respondi, abrandando o passo.

Fala da Presidência da República.

Desculpe, de onde?! insisti, afastando-me da berma da estrada para fugir ao ruído do carrossel de camiões que não parava, já bem próximo do Cartaxo.

Da Presidência da República. O senhor Presidente da República quer pedir-lhe desculpa por não ter comparecido na sua partida do IPO de Lisboa, visto que ainda se encontra nos Estados Unidos. Todavia, encarregou-me de transmitir os seus parabéns pela iniciativa e que o acompanha em pensamento na sua caminhada.

Err… Muito obrigado respondi, embasbacado.

Logo que o telefone se desligou, pensei o seguinte: “Eh pá, João, muito bom. Não foi o próprio, mas foi como se fosse. Se cá estivesse ainda era capaz de aqui vir palmilhar meia dúzia de quilómetros ao meu lado e de se oferecer para carregar a mochila. Vou partilhar isto na crónica. Bem, se calhar é melhor não… vai parecer uma bazófia de todo o tamanho. Enfim… logo se vê”.

Não resisti, como se percebe. O nosso Presidente da República habituou-nos a estes gestos de humanidade, proximidade e de ligação com as pessoas. Há quem goste e há quem não goste. Eu gosto. Não discuto posições políticas neste espaço, mas relato e comento gestos. Sem hipocrisias: o gesto agradou-me. E acredito que vá agradar aos principais visados desta caminhada (as pessoas com cancro, os familiares e amigos e cuidadores das pessoas com cancro e os profissionais de saúde que tratam doenças oncológicas) e às demais pessoas que já se ligaram à causa.

Um pouco antes deste telefonema, enquanto caminhava numa larga berma em sentido contrário ao trânsito, vi a minha passagem obstruída por dois camiões TIR parados que ocupavam a toda a berma. Fiquei entre duas opções: avançar pelo meio da estrada (Nacional 3, estrada de longas retas, onde se praticam velocidades de autoestrada) ou através de uma valeta profunda cheia água, lixo e ervas.

Dois camiões TIR com os respetivos atrelados.

O espaço a percorrer através da estrada ainda era significativo. Escolhi a segunda opção e avancei. Os camionistas conversavam em frente ao primeiro camião. Ao ver que me dirigia à valeta, um dos camionistas pediu-me desculpa e ofereceu-se para fazer de sinaleiro, avançando pelo meio da estrada para perto da curva quase cega que impedia perceber de forma segura se algum carro se aproximava. O outro camionista também avançou para a estrada para me dar cobertura. “Ok, foi simpático, em vez de apenas um de nós correr o risco de ser atropelado, corremos os três”, pensei.

Ainda assim, como não havia nenhum carro à vista e a curva estava vigiada, arranquei em passo acelerado. Ao findar a travessia, reparei que um terceiro camião vindo da curva começou a abrandar e a inclinar-se aos poucos para a berma, ocupando-a completamente. O motorista, sorrindo para mim, continuou a avançar para se aproximar dos outros dois camiões parados.

Eu saltei para a berma. Quando contornei o camião para questionar qual havia sido a ideia, já os outros dois camionistas vociferavam, furiosos, com o camarada acabado de chegar, que não chegou a sair do camião. Os dois camionistas simpáticos pediram-me repetidas desculpas e rogaram-me que não fizesse queixa. Não fiz. A quem faria? E duas boas atitudes compensam uma má.

O ser humano em sociedade é resultado de inúmeros encontros, interações, estímulos, vontades, necessidades, não necessariamente por esta ordem de prioridade, nem se esgotando no que enunciei. E depois há a contradição. Para cada ser humano empático e solidário, outro há que parece olhar para os demais de forma beligerante. Todas as pessoas, a partir de uma certa idade, pelo menos, já sofreram e erraram, já acertaram e já falharam, já foram infelizes e tristes, felizes e contentes, já conquistaram e já foram conquistados, já amaram e já foram amados, já estiveram doentes e já cuidaram, já tiveram esperanças e já se desiludiram.

Tudo isto, e um sem número de outros contraditórios, fazem parte do que é ser humano e da inerente ligação entre humanos. É por isso que, quando o mundo parece prestes a desabar, ou quando a causa é nobre, as pessoas (ou a generalidade das pessoas) se ligam mais umas com as outras. Quando um indivíduo se desliga, olha para os seus semelhantes como inimigos. É pelo menos assim que eu vejo as coisas. Talvez aquele motorista precise de se religar.

Ontem, percorri 32 km desde Vila Franca de Xira. Um amigo de longa data, que agora vive no Cartaxo, pagou-me o almoço na Azambuja e levou-me a mala até ao hotel enquanto eu caminhei até ao meu destino final (no Cartaxo) durante a tarde. A mala pesa 12 quilos, eu 72. Ao fim de 20 quilómetros, confesso que fico esgotado.

Depois, uma pessoa que se emocionou com a iniciativa #umpassodecadavez, ofereceu-se para me levar ao hotel, que ficava fora da rota que estipulei para os 300 km de Esperança. Desde quarta-feira, já recebi diversas ofertas para pernoitar e de refeições, como sempre ouvi dizer que acontece nos Caminhos de Santiago e noutros do género. O mundo é mais bonito quando as pessoas estão ligadas.

Foto

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Comentar