Pedro Silva Reis: “Os problemas do Douro são todos criados por durienses”
Pedro Silva Reis recebeu a administração da Real Companhia Velha (RCV) à beira da falência. Criou um plano de restruturação e tornou a empresa uma referência de inovação em matéria de vinhos DOC Douro. Acredita que as novas gerações saberão distribuir riqueza no Douro e deseja, daqui a cinco anos, dedicar-se apenas à sala de provas do vinho do Porto, que foi onde começou a vida profissional – há 40 anos.
O filho do carismático e polémico Manuel da Silva Reis reconstruiu um império baseado nos grandes volumes de vinho do Porto, fundou a Fine Wine Division, contratou um enólogo estrangeiro de renome, criou uma equipa de viticultura de luxo, pediu estudos sobre castas raras, recrutou Jorge Moreira, recuperou e replantou vinhas em cinco quintas, investiu no enoturismo e, em consequência, mostrou que o Douro tem uma imensa riqueza por explorar em matéria de vinhos tranquilos e que é possível manter dinâmica uma empresa com 266 anos. Pedro Silva Reis tem 60 anos e faz questão de destacar o carácter irreverente do pai. Mas bem se pode dizer que, em matéria de inovação, tal pai, tal filho.
Começou em 1982 como provador de vinho do Porto e, 20 anos depois, chega a CEO da RCV. É mais fácil gerir a empresa hoje, há 20 ou há 40 anos?
É mais fácil hoje. Há 40 anos era uma empresa com uma complexidade industrial brutal e uma gama de produtos em que certos segmentos perdiam rentabilidade. Tínhamos 550 empregados na sede – agora somos 40. Portanto, hoje o negócio é mais organizado e claro.
Esse downsizing foi um sinal de sucesso ou insucesso?
Acho que foi um sinal de sucesso, na medida em que resultou de uma chance que foi dada à sobrevivência da empresa. Conseguimos, na altura certa, fazer os dramáticos cortes para nos adaptarmos aos tempos.
O que foi mais difícil fazer durante esse processo?
Foi constatar que o negócio do vinho do Porto tinha perdido rentabilidade. E que, portanto, deixara de sustentar a empresa. Confrontei-me com a difícil decisão de fazer um dramático downsizing na área de vinho do Porto, em que liquidámos 75% do nosso stock, reduzimos a dívida e gerámos liquidez para investir na vinha e no novo negócio dos vinhos DOC Douro.
Para o seu pai, Manuel da Silva Reis, deve ter sido uma coisa muito difícil: criar um império e depois reduzi-lo.
Por razões de saúde, ele já não assistiu a isso. Fui eu que fiz esse processo.
A sua maneira de ser, enquanto gestor, é muito mais flexível do que a do seu pai. A ausência dele foi determinante para desenvolver a sua estratégia.
Para pessoas com o carisma do meu pai, com o perfil de self made man, ou se era o número um no sector ou não se era nada. Um sucessor minimamente inteligente tinha, na altura, de saber ajustar-se às circunstâncias. Donde, fizemos o downsizing, recuámos e organizámo-nos para voltar a avançar.
O que significou alienar 75% dos stocks de vinho do Porto?
Significou que, na altura (1989/1999), com base num plano estratégico, convenci o IVDP de que o downsizing com liquidação parcial do stock de vinho do Porto seria algo benéfico para o sector, porque iríamos apostar na qualidade, sair de uma concorrência desregrada e focarmo-nos nas categorias especiais do vinho do Porto e nos vinhos DOC Douro.
Mas como é que o plano funcionou na prática?
Obtivemos um estatuto em que, durante três anos, vendíamos vinho do Porto e não comprávamos. E assim o stock reduzia. O presidente do instituto da altura entendeu que o plano não só não criava instabilidade no mercado como contribuía para tornar uma empresa mais coerente e competitiva.
Nessa altura já estava a pensar mais no sector dos DOC Douro?
Não, nos dois sectores. Olhei para o nosso negócio do vinho do Porto e concluí que 25% do negócio era bom e os outros 75% não valiam nada. Eliminámos esta parte, reduzimos o valor da dívida e focámo-nos no negócio do vinho do Porto que aportava rentabilidade e nos novos investimentos.
Todas essas decisões foram tomadas só por si?
Essencialmente, sim. Na altura, senti-me só porque já não tinha o meu pai para lhe pedir opiniões. E, de resto, mesmo que o fizesse, ele não iria compreender a minha estratégia. O meu pai fazia imensa diferença de idade de mim. Quando eu tinha 40 anos, ele tinha 80, para mais com uma doença degenerativa de que só nos apercebemos tarde.
O seu pai treinou-o para assumir a gestão da RCV?
O meu pai foi sempre muito aberto connosco. Como sentia que estava a envelhecer, puxava por nós. Dava-nos responsabilidades, coisa que não era comum naquela época.
Em 1996 contrata um enólogo prestigiado – Jerry Luper – para trabalhar os vinhos DOC Douro. Porque foi buscar uma solução ao exterior?
Tínhamos duas hipóteses: ou entrávamos num processo de aprendizagem lento e feito à nossa custa ou escolhíamos alguém que dominava a escola moderna da enologia. Vingou a segunda opção.
Estuda enologia em Bordéus, mas depois não opta pela área da produção. Porquê?
Porque percebi que a empresa era grande demais para eu me isolar na adega e um dia aspirar a ser o enólogo da casa. Não só havia uma complexidade comercial e administrativa grande como, por outro lado, o meu pai metia-se muito na adega. E quando chego de Bordéus, cheio de ideias, o meu pai cortava-me as vazas. Vi logo que não valia a pena entrarmos em choque, pelo que optei pela parte comercial.
Esses choques eram intensos?
Sim. Eu queria isolar castas, fazer fermentações mais pequenas ou usar barricas e ele começava a dar a volta, a dizer que não fazia sentido parar a descarga de uvas, isolar tegões e tal. E depois haviam os que diziam que o menino Pedro anda agora a fazer isto e aquilo. De maneira que percebi que a única maneira de fazer coisas diferentes era criar a Fine Wine Division, já em 1997 – um departamento que teve liberdade total para trabalhar.
A ideia de trazer as castas estrangeiras para a Quinta do Cidrô foi sua?
Não, foi do meu pai. Um dia foi visitar-me a Bordéus e estávamos a provar uns vinhos quando me diz que devíamos experimentar algumas castas. Nessa altura sugeri-lhe Chardonnay, Sauvignon Blanc e Semillon.
O seu pai gostava de experimentar vinhos estrangeiros?
Claramente. O meu pai foi um homem muito inovador no Douro. Repare que foi ele quem, a nível mundial – note bem – trouxe o aço inoxidável para o sector do vinho. O meu pai, quando trabalhava na Miguel Sousa Guedes, percebeu na Suíça a importância do aço inoxidável no sector dos lacticínios. Nos anos 1950, os irmãos Ernest e Júlio Gallo [fundadores da E&J Gallo Winery, um gigante a nível mundial] vieram a Portugal ver cubas de um milhão de litros de aço inoxidável porque na Califórnia ainda se usava ferro pintado. O primeiro tanque de aço inoxidável que transportou vinho do Douro para Gaia foi o meu pai que o mandou fazer, em cima do chassis de um camião Volvo da Auto Sueco.
Isso não terá sido uma ideia pacífica.
O sector dizia que o cheiro a gasóleo iria contaminar o vinho, mas ele conseguiu uma licença experimental do instituto para fazer uma viagem, sugerindo que se fizessem análises do vinho à saída da Régua, repetindo-se depois o mesmo procedimento na chegada do vinho a Gaia. Como não se detectou qualquer alteração, passaram-lhe uma licença para transportar o vinho dessa forma. Sistemas de frio ou linhas de engarrafamento, muito foi introduzido no sector pelo meu pai. O primeiro tractor John Deere que apareceu no Douro foi na Quinta das Carvalhas.
Qual é o peso hoje do vinho do Porto no negócio da RCV?
Cerca de 50%. É assim porque nos concentramos nas categorias especiais.
Explique-nos o que aconteceu com o estudo da Universidade de Groningen sobre a datação do vosso Porto Tawny 10 anos.
Isso é uma coisa escandalosa porque uma série de jornalistas e investigadores de reputação duvidosa foi a uma universidade e resolveram, sem publicar o método analítico, avaliar uma série de garrafas de vinho do Porto e lançar um conjunto de atoardas, entre elas uma gravíssima: a de que haveria álcool sintético no vinho do Porto. Coisa que já reconheceram como erro e vieram a público pedir desculpas. Lançam depois outra atoarda a dizer que o nosso Tawny 10 anos tem uma idade entre zero e cinco anos, quando lhe dissemos que isso era impossível. O IVDP foi lá falar com eles, mas continuamos todos a não conhecer o método analítico. O que é que eu vejo nisso? Uma tremenda desonestidade académica.
Mas encontram alguma razão para que um estudo desses tenha vindo da Holanda?
Sabe, os holandeses são terríveis. O programa era assim: esta garrafa de vinho do Porto supostamente de 10 anos custou 15 euros. Como tem – dizem eles – entre zero a 5 anos, só devia ter custado 5 euros. Portanto, o que está errado é o preço. Houve clientes que pediram ao nosso distribuidor o crédito da diferença face a tal idade defendida pelo estudo. Portanto, eles não provam vinhos (não fazem análise sensorial), não divulgam o método analítico e não chamam o organismo regulador para participar no estudo, mas tiram conclusões. Nós pedimos ao IVDP um acto de fiscalização. O IVDP comprovou que tudo estava legal e enviámos os resultados aos nossos clientes. Portanto, aquilo é uma atoarda brutal. Não há uma base científica nem está provado em lado algum que o C-14 possa determinar idades médias de vinhos num lote com várias colheitas.
A RCV faz mais esforço por ser conhecida pelos seus DOC Douro do que pelo vinho do Porto.
É mais fácil inovar no DOC Douro do que num vinho com séculos de história. Por mais que se faça, inovar no vinho do Porto é difícil. Já o DOC Douro tem uma enorme margem para inovar.
Mas reconhece que a reputação dos DOC Douro da RCV é superior à reputação dos Portos da RCV?
Reconheço que o mercado nos identifica assim. Isso preocupa-nos e tem merecido uma reflexão interna no sentido de percebemos como voltaremos a abraçar o vinho do Porto.
É por isso que diz que quando se reformar, daqui a cinco anos, quer voltar à sala de provas dos Portos da RCV.
Quero voltar a pensar todos os dias no vinho do Porto. Costumo dizer que, nessa altura, pretendo ter uma ocupação, mas sem preocupação.
O Douro é uma região sustentável?
Olho para o Douro com optimismo porque acho que as coisas já estiveram piores. As novas gerações de viticultores, enólogos e agrónomos que estão a começar a ocupar lugares-chave na liderança das instituições durienses serão uma lufada de ar fresco para a compreensão endógena dos problemas do Douro. Porque os problemas do Douro são todos criados por durienses. Não temos nenhuma ameaça externa a complicar-nos a vida. Somos nós que complicamos tudo. As novas gerações vão unir e valorizar o Douro.
Aceita que se paga mal à produção e que se vende DOC Douro e vinho do Porto a preços muito baixos?
Eu sofro as dores do produtor, mais do que as do comerciante. Como produzo muito, sei o que custa produzir.
O Douro terá de arrancar vinha?
A dimensão é um problema, mas arrancar vinhas dói muito. O Douro tem é que ter uma consciencialização da qualidade. Todo o viticultor acha que as suas vinhas são as melhores, mas a realidade é que no Douro também há vinho fraco. Em todas as quintas há 10 a 15% de vinho que não qualifica a marca. Se meter isso à escala duriense, temos milhares de pipas que não servem para nada, são vinho de mesa. Donde, temos de subdividir o Douro e perceber o que vale e o que não vale. Se queremos um Douro de excelência, não vale a pena trabalhar com qualidades médias.
Está confiante na geração que vai gerir a RCV quando for para a sala de provas?
Tive a sorte de ter filhos e sobrinhos que nasceram no meio e que estão preparados, pelo que tenho a expectativa de que saberão abraçar a causa.
Como é feita essa preparação?
As novas gerações têm de dar provas fora. Só depois é que entram na empresa.
O Pedro começou por estudar enologia, mas depois foi para a gestão. O seu filho Pedro começou no marketing e agora está na produção. Isso significa que, no futuro, poderá ser ele o líder da área da produção?
O Pedro fez o contrário de mim e é engraçado que encontrou uma vocação quando me disse que queria ir para a adega. De facto, está feliz.
Não poderá isso criar eventuais conflitos com uma personalidade forte na empresa que é o Jorge Moreira?
Não, porque as hierarquias estão bem definidas e ele é um aprendiz. O Jorge tem o seu espaço da hierarquia. Um dia o Pedro criará o seu espaço e desenvolverá a sua Fine Wine Division. No dia em que der provas e tiver o reconhecimento, aí já poderá falar de igual para igual com um director de enologia. Mas, até lá, os lugares são respeitados.
O Pedro tem uma capacidade de comunicação que fará que o Jorge o adopte como seu afilhado profissional, ajudando-o a evoluir dentro da empresa. Acho que o Jorge será mais padrinho dele do que eu.
Quanto vai facturar a RCV este ano?
Cerca de 28 milhões. E a crescer.