Afinal, é mito que não se deve tomar banho durante a digestão?

O presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia explica que “depende de várias circunstâncias” e que mergulhar na água fria após uma refeição pesada pode provocar um “conflito de interesses” no nosso organismo.

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Refeições pesadas antes de um banho frio podem ser "muito perturbadoras" Christopher Campbell

A sabedoria popular há muito diz que se deve esperar até fazer a digestão para se tomar banho. “Evite refeições pesadas, não beba álcool e após uma refeição, aguarde duas a três horas antes de entrar na água”, referia uma recomendação da Direcção-Geral da Saúde (DGS), publicada no início deste mês no Twitter e partilhada na conta oficial do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A publicação — que aparenta ter sido, entretanto, apagada — gerou controvérsia entre utilizadores da rede social, que acusaram a DGS de fazer uma recomendação com base num “mito”.

Mas, afinal, pode-se ou não tomar banho durante a digestão? Em entrevista ao PÚBLICO, Guilherme Macedo, médico gastrenterologista e presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, explica que “depende de várias circunstâncias”.

“Aquilo que costuma afectar mais gravemente o que pode causar uma perturbação grave cardiovascular — como uma arritmia ou paragem cardíaca — tem que ver, por um lado, com uma reacção térmica, ou seja, se houver um choque térmico diante aquilo que é a temperatura corporal e a água do mar”, começa por explicar o especialista.

De acordo com o médico, “esse choque térmico provoca uma reacção neurológica especial mediada pelo nervo vago que consiste em fazer um abrandamento significativo do batimento cardíaco”. Isto “pode provocar uma arritmia, que, nalgumas circunstâncias, leva a perturbações transitórias do nível de consciência, o que não é bom quando se está mergulhado dentro de água”, podendo mesmo gerar “uma paragem súbita do batimento cardíaco”.

Um conflito de interesses

Guilherme Macedo acrescenta que o choque térmico poderá ser “tanto mais importante quanto o aparelho digestivo também estiver em funcionamento pleno”. “Se o nosso tubo digestivo estiver num processo activo digestivo — por exemplo, após uma refeição copiosa em que vários estímulos digestivos estão presentes — esse choque térmico ou esse contraste mediado pelo nervo vago é um contraste ainda maior porque todo o sistema digestivo em funcionamento é também por si só mediado por esse nervo vago do sistema parassimpático [responsável por fazer com que o organismo se acalme após uma situação de stress]​. Portanto, há aqui um conflito de interesses entre o nosso organismo que quer fazer a digestão e um estímulo cutâneo que pode desencadear uma reacção excessiva do tal nervo vago”, explica.

Segundo o médico gastrenterologista, “as refeições copiosas antes de um banho frio podem ser muito perturbadoras e podem causar algum enjoo, náusea e indisposição justamente porque existe esta estimulação vagal”.

Por outro lado, se fizermos “uma refeição muito ligeira e tivermos uma habituação progressiva àquilo que é a temperatura da água não ocorre nenhuma interferência porque o organismo vai-se adaptando”. Mas essa adaptação progressiva é muito mais difícil se houver um estímulo permanente e grande da área digestiva que entre em conflito com o estímulo cutâneo.”

O presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia conclui, assim, que se trata de um mito se for generalizada a definição de tomar banho. Mas deixa um alerta: “Não é mito e há uma base científica ou há uma razão biológica para justificar que após uma refeição copiosa se seja muito prudente na acessibilidade à água não só por causa do choque térmico mas por causa do próprio processo digestivo”.

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