Ninguém quer saber, nem compreender

Se fosse fácil [acabar com as situações de sem-abrigo] por certo já estaria feito. É preciso ouvir, sentir, dar e receber, criar laços, vincar a confiança, para que num momento — naquele momento certo — se consiga abrir a porta de saída para uma ajuda técnica e especializada.

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"Jamais imaginava que havia uma civilização escondida feita de tendas, panos e cartão" DR

Eu diria que conheço bem a cidade do Porto e arredores. Sempre vivi mais perto dos ricos do que dos pobres, mas não há bairro que eu não conheça. Orgulho-me muito de ter trabalhado uns anos no INEM, que, para além da experiência médica que fui absorvendo, me permitiu entrar em todo o tipo de casas, de todo o tipo de pessoas. Bairros problemáticos dominados pelo tráfico e pelo crime, as famosas “ilhas” escondidas e até casebres no meio do nada sem electricidade. Entrei em todo o lado, com os 5 sentidos bem alerta. Achava eu que tinha visto tudo, mas infelizmente não. Há pior.

Há um submundo escondido que não se vê a olho nu mesmo para quem já palmilhou a cidade de lés a lés. Gente que vive nos extremos da pobreza e faz por não ser vista pela fuga às autoridades e também para que não sejam vistos pelos cidadãos que têm local para tomar banho, ou seja, todos nós. Inimaginável como se colocam em tantos lugares onde já passei centenas de vezes e jamais imaginava que havia uma civilização escondida feita de tendas, panos e cartão. Alguma coisa em nós os fez tornarem-se invisíveis.

Tive a oportunidade de fazer uma ronda pela cidade com a associação Saber Compreender que já há uns anos tem vindo a unir esforços para apoiar os sem-abrigo (parece que é mais correcto dizer “pessoas em situação de sem-abrigo”, mas eu não tenho muita paciência para este excessivo cuidado com as palavras, quando o cuidado que temos que ter é com as pessoas). Fui como mero observador. Acho que me deram esta oportunidade por ter vindo a fazer um esforço para lhes dar uma força, alguma visibilidade e uns trocos quando me pagam para coisas que eu acho que não mereço ficar com o dinheiro.

Prepararam-se os kits com comes, bebes, café e chá como cartão de visita para o mais importante: saber quem são e compreender os porquês de viverem sem um tecto digno, para que se possam tentar encontrar caminhos e soluções.

Dói-me a alma pensar que há tanta gente com tanto e outros a dormir na rua ao frio, à chuva e à mercê da maldade alheia.

Li algures que em Portugal a estimativa é que sejam mais de 8000 as pessoas que vivem no degrau mais baixo da miséria, os sem-abrigo. Já perceberam que não sou perito no tema, mas diria que é consensual que a grande maioria tenha sido dominada pela droga ou doenças psiquiátricas, ainda que se vejam pessoas bem cuidadas e bem vestidas, cujas estórias me parecem estar por contar, e que estão humildemente na fila para receber a sua parte da bondade de quem não se esqueceu que somos todos da mesma família.

Há uns meses convidaram-me para falar num evento patrocinado pela indústria farmacêutica. Durante meia hora contei estórias sobre medicina humanitária, e isso valeu-me um donativo que vim mais tarde a saber que cobre os custos anuais da Saber Compreender. Este contraste do luxo, da extravagância, da aparência, com a miséria, a desumanidade e a luta pela sobrevivência mexe muito comigo. Se soubesse como e quanto custa, lutava até ao fim da minha vida para juntar esse dinheiro e tirar essas pessoas da rua.

Se fosse fácil por certo já estaria feito. É preciso ouvir, sentir, dar e receber, criar laços, vincar a confiança, para que num momento — naquele momento certo — se consiga abrir a porta de saída para uma ajuda técnica e especializada que possa tratar as questões de fundo, e encaminhar para a tão desejada independência económica que lhes permita voltar a ser visíveis por todos nós.

Cada um de nós vale pelo tamanho dos seus sonhos, e como sociedade apenas temos a força do nosso elo mais fraco. Reforcemo-nos!

Nunca duvidem que podia ser qualquer um de nós.

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