A vida num campo de refugiados
Uma criança conta o seu dia-a-dia longe de casa, depois de fugir da guerra com o pai. Há muitas filas na sua nova vida
“Os senhores da guerra estavam cada vez mais zangados e discutiam lançando balas e bombas. — É hora de fazer a mala. Vamos embora! — disse, numa noite, o pai. Pegou na maior mala que tínhamos em casa e pôs-me lá dentro. Naquela mala ia tudo o que precisava de salvar, dizia ele pelo caminho.” É assim que entramos no livro e na vida desta criança que tenta, com o pai, alcançar um país sem guerra.
Um livro duro, mas ao mesmo tempo terno e esperançoso. A vontade de o escrever veio da triste história de Alan Kurdi, o menino de três anos que apareceu afogado numa praia da Turquia e cuja foto chocou o mundo em 2015. De pouco adiantou.
A autora, Rita Sineiro, disse ao PÚBLICO: “Sempre que me dizem que o texto do Filas de Sonhos está muito bonito, fico atrapalhada, sem saber muito bem o que pensar. Porque eu sei que o que fez nascer as primeiras palavras do texto nada tem de belo, bom ou bem para seguir a pista dos gregos. Muito pelo contrário. Foi a vergonha, a raiva e uma tristeza que na altura me pareceu oca que me fez sentar e começar a escrever. Isso e uma promessa, a promessa que na hora fiz àquela criança desaguada sem vida numa praia turca. E foram precisas várias camadas de ironia e alguma ternura que fui buscar à infância para disfarçar esse estado de espírito primeiro e contínuo, já que nada nesta realidade até hoje mudou.”
Até chegarem ao campo de refugiados, onde há filas para tudo e a toda a hora, os protagonistas chocam primeiro com “um muro gigante de pedra e gente de farda ainda mais dura do que a pedra”. Com ironia, escreve-se: “O pai explicou-me que a culpa era dele. Com a pressa da partida, tinha-se esquecido do convite em casa. E naquele país tão perfeito só se entra com convite.”
Tentam depois por mar, “íamos ser marinheiros”. O barco voltou-se, mas sobreviveram. “E não tardou que um barco cheio de super-heróis viesse salvar-nos.” No entanto, as pessoas em terra demoraram a aceitar que desembarcassem. “Mas o pai dizia que estavam apenas a preparar tudo para nos receber, daí a demora.”
Sonhar com a Finlândia e com o regresso a casa
Lá conseguem ser acolhidos num campo, onde “nada se faz sem esperar numa longa fila”. Para tomar banho, para lavar os dentes, para comer. Ali, a escola não chega para todos, têm de ir “à vez”. “Nos dias em que não há espaço para nós na escola, sonhamos que vivemos na Finlândia, onde dizem que há a melhor escola do mundo.”
A autora diz-nos ainda que se “arrelia” com a ideia de que se deve “esconder das crianças o lado sombra do mundo”. E acrescenta: “Parece-me também ser esta uma forma irresponsável de educar. As crianças estão connosco no mundo, cheiram-nos as preocupações e angústias, por todo o lado são atingidas com golpes duros de informação. Antecipar esses golpes inesperados ajudando-as a criar um sentido crítico sobre o que se passa no mundo é prepará-las para o futuro, mas também protegê-las no presente.”
No livro, o rapaz aprende com o pai que os sonhos têm a “magia de transformar a espera em esperança”. Por isso, vão aguentando juntos todas as filas quotidianas. Mas o menino guarda um segredo: “O pai não sabe, mas o que eu sonho mesmo, mesmo, é com uma fila que nos leve de volta para casa.”
Rita Sineiro tem a esperança de que “os livros sejam capazes de transformar o mundo, um leitor de cada vez”. E conclui: “Se este livro que escrevi (e faço a mediação) na primeira pessoa for de alguma forma escutado também na primeira pessoa, essa primeira pessoa que nos leva a calçar os sapatos ou os pés descalços do outro, então já terá valido a pena a vergonha, a raiva e a tristeza que lhe serviram de começo. Já a vida do pequeno Alan, como a vida de todas as crianças refugiadas, terá sido — será sempre — perdida em vão. Sobretudo enquanto a mobilização para proteger fronteiras seja infinitamente mais poderosa do que a vontade de salvar vidas humanas.”
“Pura literatura”
Quando a editora Inês Castel-Branco, da Akiara Books, recebeu a história que Rita Sineiro tinha escrito e quais as suas motivações, não duvidou nem um momento: “Tinha de publicá-la!”, contou ao PÚBLICO via email.
“Muitas vezes tinham-me enviado histórias sobre refugiados e emigrantes, mas sentia sempre que lhes faltava credibilidade ou profundidade. Pelo contrário, quando li o texto da Rita, fiquei totalmente emocionada, porque é um texto muito bem construído, parece que ouvimos mesmo a voz do menino refugiado... e a última frase ainda continua a emocionar-me, cada vez que a leio. É pura literatura, toca a fibra da alma, trabalha com sentimentos muito contrastantes: a voz ingénua da criança frente à crueldade do mundo exterior; a esperança e protecção do pai, que permite criar empatia no leitor adulto; e a frase final do menino que nos revela, de novo, quais os seus sonhos mais profundos e humanos e como todas as estruturas que tentamos oferecer não se comparam com a vontade de voltar para casa.”
“Oxalá desaparecessem todos os muros”
A ilustração foi entregue a Laia Domènech, que, com pastéis a óleo e muita sensibilidade, criou um objecto artístico também comovente. Numa apresentação do livro em Barcelona, a artista fez saber que demorou dois anos a concluí-lo, depois de profunda investigação, e que teve “de desenhar muitos muros e muitas filas”. Também ela tem um desejo: “Oxalá desaparecessem todos os muros e pudéssemos sempre continuar a sonhar.”
Os livreiros da Catalunha premiaram este livro como o melhor álbum ilustrado do último ano e os direitos já foram vendidos ao Brasil, à Alemanha e à Coreia do Sul.
A fila mais demorada para os protagonistas é a da mudança da cor do carimbo. “O nosso ainda está vermelho, e só quando estiver azul é que podemos seguir caminho.” O pai explica: “Está a demorar tanto tempo porque todos os países querem ficar connosco”…