O poder da escuta abraçado pelo afeto
Defender o direito de participação das crianças nos primeiros anos de vida é partir, fundamentada e convictamente, da afirmação da criança como pessoa plena, colocando escuta e respeito na promoção da qualidade dos contextos educativos.
Reimaginar os nossos futuros juntos é o título do último relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2021). No excecional relatório anterior (Educação: um tesouro a descobrir (1996), coordenado por Jaques Delors), afirmava-se que o eixo central do novo milénio seria aprendermos a viver juntos e esta afirmação pulsou — viva, forte e fundamental — nas duas primeiras décadas deste milénio e no início da terceira que agora vivemos. Neste novo documento, concluído em tempo de pandemia e alicerçado num processo de consulta global que envolveu cerca de um milhão de pessoas, a proposta da UNESCO retoma este pulsar e desafia-nos a “reimaginar os nossos futuros juntos”.
O plural “futuros” cria uma dissonância que o conteúdo do documento esclarece, quando afirma que “nenhuma tendência é um destino” e que existem diversos futuros possíveis — as visões, princípios e propostas que apresenta assumem-se como um ponto de partida, desafiando-nos a traduzi-los e contextualizá-los num esforço partilhado, coletivo.
Neste desafio, o relatório afirma a existência de “muitos pontos de luz” e que, ao procurar captá-los e construir a partir deles, não é um manual nem um plano de ação que oferece, mas antes uma abertura para um diálogo vital. Um dos pontos fundamentais para este diálogo é a proposta que examinemos mais de perto os dilemas pedagógicos e as possibilidades que surgem em cada etapa do ciclo de vida, colocando o foco na relevância de pedagogias participativas e colaborativas naturalmente dialogantes, dialógicas. Neste novo relatório, é, então, iluminado o início da vida, ajudando-nos a refletir sobre “como melhor apoiar fundamentos da primeira infância”.
Em harmonia, também o Conselho Nacional de Educação nos lançou, na recente recomendação “A voz das crianças e dos jovens na educação escolar” (2021), o repto de perspetivarmos os Direitos das Crianças a partir dos zero anos, particularmente dos zero aos três anos. Nesta recomendação, interpela-nos sobre como escutar a voz das crianças e a sua perspetiva “no exercício da sua agência pessoal e relacional” e sobre como “dar voz” às suas famílias, assumindo-as “como parceiras e co-construtoras das estruturas de acolhimento dos seus filhos e não como utentes ou consumidoras de serviços”.
É também aqui que o nosso “ponto de luz” se foca: na importância de escutarmos a voz das crianças — desde o seu nascimento, nos fundamentais primeiros três anos de vida — e a voz das suas famílias. Perguntamo-nos: como traduzir o que o(s) choro(s), o sorriso e o riso comunicam? Como traduzir a sensível expressão do seu bem-estar em nós e do nosso bem-estar nas crianças? A força da relação calorosa, feita de reciprocidade, no seu e nosso desenvolvimento?
Se quando nasce um bebé nasce também uma mãe, um pai, transformando-se a constelação familiar a cada filho/a e a cada tempo de vida, então o nosso acolhimento e escuta de crianças e famílias deve ser cuidadosamente, amorosamente, refletido; se quando cuidam de um bebé os adultos aprendem tanto sobre o bebé como sobre si mesmos (Brazelton, 1983), então essa (trans)formação pode ser alavanca maior para “reimaginar(mos) os nossos futuros juntos”.
Defender o direito de participação das crianças nos primeiros anos de vida é, assim, partir, fundamentada e convictamente, da afirmação da criança como pessoa plena, colocando escuta e respeito na promoção da qualidade dos contextos educativos; no envolvimento e participação das famílias; numa intervenção sensível, preventiva e inclusiva; numa pedagogia do encontro que, colaborativamente, irradie uma cultura da infância.
Ao/à leitor/a uma palavra de compromisso maior: como profissionais de Educação de Infância, como pessoas e cidadãos/ãs, aqui estaremos para defender a voz das crianças e as suas famílias, com a convicção de que, se mudarmos o início da história, podemos reimaginar e fazer do mundo o nosso melhor lugar — presente e futuro.