Eu e mais (de) oitenta
Eram quase só velhotes à minha volta, nas duas filas. Eu tinha marcação, e coloquei-me na respectiva fila, mas logo aí senti-me culpado por haver velhotes na outra que iam esperar mais do que eu.
Espaço reduzido e ainda assim muita gente. Terei visto mais de 80 pessoas, e quase todas com mais de 80. Pois é. Fui levar a quarta dose, ou apanhar a v(b)acina, como preferirem. A minha doença assim me obriga, pois andei a tomar medicamentos que confundem o sistema imunitário. Poderia ter sido uma chatice, e para a maioria o será, mas desta vez foi uma viagem fantástica.
O segurança controla a entrada da porta estreita, e cá fora desenham-se duas filas: a dos que têm marcação e a dos que não têm. Os idosos — ou seniores, ou terceira idade, ou geriátricos — que me perdoem, mas vou-lhes chamar “velhotes” com todo o carinho do mundo. Eram quase só velhotes à minha volta, nas duas filas. Eu tinha marcação, e coloquei-me na respectiva fila, mas logo aí senti-me culpado por haver velhotes na outra que iam esperar mais do que eu. Atrás de mim, na fila, vinha um senhor a empurrar uma senhora de cadeira de rodas que dentro da categoria dos velhotes era mesmo muito velhota. Eu deixei-a passar à frente com naturalidade, mas com um pensamento bastante estúpido que me dominava “se eu deixo passar todos os que parecem muito velhotes, não saio daqui nunca!”... Deixei passar mais uma senhora de cadeira de rodas, e outra de muletas que mal conseguia andar. Que dilema ético, eu que vim de bicicleta, sem saber bem, qual o nível de velhice que deveria deixar passar à minha frente?
Mas claro, bem à portuguesa instala-se alguma tensão entre as filas mal desenhadas, os que tentam passar à frente, e os que vão à frente só fazer uma perguntinha, e os que reivindicam ser prioritários dentro deste cenário. Sem perceber muito bem o contexto, ainda ouvi um velhote cheio de força a insurgir-se contra o segurança, “eu tenho mais de 80 anos, e vi um a passar à minha frente que tinha vinte e tal!”... Sem o mesmo nível de hostilidade, fez-me lembrar a célebre frase de Victor Espadinha: “Eu, com 80 anos, ainda mando duas bofetadas a esse cabr@o” (à porta do Estádio de Alvalade, à procura de Bruno de Carvalho).
Lá entrei, lá me vacinei, dei duas de letra sobre os Médicos Sem Fronteiras com a enfermeira, e lá fui para o recobro cumprir os 30 minutinhos da praxe. Aqui já está tudo mais tranquilo, já todos têm o que queriam, já não há hostilidades no ar, é só paz e amor. Sentei-me, resisti à doença de brincar com o telemóvel, e optei por olhar à minha volta. Com os tempos fui desenvolvendo um desporto, por passar muito tempo sozinho em aeroportos, que chamei de people watching, em que olho para as pessoas e imagino de onde vêm, para onde vão, quem serão, em que pensam, por que lutam, com o que é que sonham, e por aí afora... E nesta sala de recobro regressei a este desporto que já não praticava há algum tempo.
Velhotes, velhotes e mais velhotes. Mas também havia alguns novos. Por que estarão aqui? Não parecem doentes. Será que também têm uma doença sinistra e invisível como a minha, que os faz sofrer horrores sem ninguém saber? Será que são uns patetas negacionistas da vacina e que agora a querem tomar? Se assim for, são ex-patetas, sempre é melhor do que ser patetas... Será que são daqueles que, não sendo negacionistas, morriam de medo da vacina e agora ganharam coragem... Depois, mesmo de frente para mim, está um rapaz que claramente não é português. Ouço-o falar com a auxiliar e percebo, assim como percebo que parece totalmente perdido. Estive quase para me oferecer para ajudar, mas não foi preciso. Tem cara de ser indiano. Entre línguas, sotaques e feições, costumo ser muito forte a reconhecer nacionalidades. Talvez seja um imigrante que veio de onde nem sempre é fácil ter uma vacina, e agora entra nas nossas contas para ser vacinado. Percebo que tem de ter um papel para entregar ao patrão, a dizer que ali esteve. Normalmente pergunto de onde são e, seja de onde forem, tento encontrar qualquer coisa para dizer que adoro nos seus países, ou se conhecer especificamente a cidade ou região, vou ao detalhe. Decidi, sem saber, que este rapaz era da Índia, e viajei pelas minhas memórias deste país cujos encantos vão para além da descrição. “Mas também poderá ser do Paquistão”, disse para mim, enquanto viajava naquela cor de pele castanha de chocolate, tão bonita.
Mas eram mais os velhotes que me envolviam e que me roubavam a curiosidade. Que rugas tão vincadas e tão bonitas. Que histórias contarão estas rugas? Adoro rugas. Não há nada que dê mais carácter e personalidade do que as rugas que são as marcas das conquistas da nossa vida. Tanta gente a gastar dinheiro com plásticas e botox, e eu adoro rugas. Terão crescido na pobreza do tempo da outra senhora, com as mãos na terra? Ou terão fugido da pobreza, como tantos, pela Europa fora? Terão lutado aquelas guerras estúpidas no Ultramar? Lembrar-se-ão da Segunda Guerra? Rugas tão vincadas, tão vividas, tão bonitas que acabam naqueles olhos claros e meigos da velhice, que inspiram pela simplicidade. Não a simplicidade de uma criança que nada sabe, mas a simplicidade de quem tanto sabe e por isso já não complica. Adoro viajar nestas rugas, cara a cara, e com tempo para desfrutar as melhores viagens da nossa vida: as pessoas.
Ainda me ri com uma querida filha cheia de carinhos que acompanhava o pai e dizia: “O meu pai ainda consegui trazer, mas a minha mãe já está farta das vacinas...” O que é que eu posso fazer? Armar-me em activista pró-vacinas?! Eu compreendo a senhora lá de casa, estamos todos fartos, mas a ciência é sólida, e é o que nos permite estar a viver uma vida normal, sem que morram milhares de pessoas. Mas eu, ali, era apenas um vacinado, e por isso calei-me com um sorriso, com esperança que a senhora mude de ideias.
“14h15, podem sair!” Era a minha hora. Não sem antes perceber que muitos dos velhotes não reagiram à voz de chamada da auxiliar, e por isso ela vai, etiqueta a etiqueta, verificar a hora dos que parecem estar isolados pela surdez. Levanto-me com a sensação de quem viu mais cultura do que em Florença e Paris juntas, e com a sorte de as rodas que me levam a casa serem as de uma bicicleta, e não de uma cadeira empurrada por alguém, mas com muita inveja da boa, das rugas tão bonitas que eu vi.
Eu e mais de oitenta.