A “vida familiar louca” de David Mitchell
Certa vez o escritor irlandês David Mitchell declinou uma entrevista presencial invocando ter uma uma vida doméstica muito agitada. Só mais tarde descobri a razão: Mitchell tem, como eu, um filho autista.
Numa outra vida – ou seja, antes de ser tocada pela maternidade –, interessava-me por livros de ficção que falassem de clonagem humana e biotecnologia. Li o Nunca me deixes (2005), do Kazuo Ishiguro, e decidi estudar as relações entre a literatura e a genética. Queria entender como os romancistas se apropriavam de temas científicos para narrar histórias, explorar aspectos impensados da condição humana ou simplesmente emprestar à história um certo sabor distópico.
Foi assim que tropecei em Atlas das Nuvens (2004), do autor britânico David Mitchell. Esta obra (que já foi adaptada ao cinema pelos irmãos Wachowski) tem uma estrutura fragmentada que entrecruza a vida de seis personagens de períodos históricos distintos, do século XIX até a um futuro pós-apocalíptico. A relação entre estas seis figuras transcende o tempo e a geografia, elas estão de alguma forma conectadas e todas trazem no corpo uma marca de nascença em forma de cometa. Apaixonei-me por uma destas figuras, a Sonmi~45, uma mulher clonada que é escravizada como ajudante numa cadeia de restaurantes.
Decidi então contactar o David Mitchell e pedir-lhe uma entrevista para o meu trabalho sobre a representação da genética no romance contemporâneo britânico. Ele vivia (e ainda vive) na Irlanda. Convidei-me para ir à sua casa porque tenho muita lata, ou melhor, porque as entrevistas presenciais são mais ricas (e também porque gosto de conhecer as bibliotecas dos escritores, confesso). Mitchell disse-me com enorme franqueza que não me podia receber porque tinha uma “crazy family life”. A forma como o autor declinou a minha proposta foi educada. Pensando bem, ele nem sequer teria de se justificar. Muitos escritores são reservados, alguns nem dão entrevistas. Outros, quando o fazem, escolhem lugares neutros.
Na altura, a frase ficou registada na minha cabeça: “Tenho uma vida familiar louca.” Era solteira e não tinha filhos, ignorava como a vida familiar podia ser um obstáculo para uma entrevista. Pensava naquelas palavras e imaginava crianças a correr na relva, a chamar pelo pai, e este a tentar em vão escrever à mesa do alpendre. A nossa conversa acabou por acontecer por e-mail e rendeu material suficiente para um capítulo. Uma vez terminado o trabalho de campo da minha investigação, arrumei as malas e mudei-me do Reino Unido para Portugal.
Entreguei a tese em 2012, no mesmo ano em que a minha filha mais velha nasceu. Não pensei mais no David Mitchell. Passei a comprar e a ler menos ficção, para ser sincera. Eu, que havia passado anos fascinada pelos caminhos difusos da biologia e da identidade, tinha produzido uma criatura com metade do meu património genético. Era o melhor e mais bonito “livro” que poderia ter nos braços. Estava encantada com a experiência de ter um ser pequenino em casa. Trabalhava a tempo inteiro neste jornal, dormia de forma precária e, quando tinha oportunidade de ler, entre um biberão e uma máquina de louça, eram quase sempre textos relacionados com o trabalho ou a maternidade. Parte da minha vida anterior havia sido encaixotada, os livros desceram com as respectivas estantes para a cave. O escritório, onde antes estudava à noite, foi transformado no quarto do bebé.
Anos mais tarde, já a morar em França, quando o meu filho mais novo começou a mostrar sinais de uma possível diferença no desenvolvimento, iniciei uma pesquisa intensa sobre o autismo. Livros, notícias, blogues, páginas no Facebook... Devorava tudo. Foi assim que a minha vida se cruzou, mais uma vez, com os textos de David Mitchell. Deparei-me com um artigo, publicado no The Guardian, no qual o premiado romancista britânico explica como aprendeu a viver com o autismo do filho. A leitura de The Reason I Jump, do escritor japonês Naoki Higashida, foi decisiva para isso. A obra foi transformada num excelente documentário em 2021.
Mitchell viveu no Japão e é casado com Keiko Yoshida, que co-traduziu o tal livro de Naoki Higashida do japonês para o inglês. O casal tem dois filhos, um deles é autista. Ambos descobriram a obra de Higashida e ficaram profundamente tocados por aquela escrita. Creio que sentiram conforto ao encontrar um texto que abre uma porta para a compreensão do que sente, e pensa, alguém com a mesma condição do filho. E por isso resolveram traduzir e divulgar a obra em 2013. Só a li mais tarde, em 2017, quando o autismo se tornou um tema central na minha vida. Foi uma leitura transformadora. Recomendo-a a todos, sobretudo pais e mães atípicos, mesmo que sobre o livro paire uma dúvida acerca de quem verdadeiramente o escreveu (há quem desconfie que foram os pais; eu discordo). Infelizmente, ainda não está traduzido para o português.
Hoje, com a vantagem do tempo, compreendo inteiramente a “vida familiar louca” que fez David Mitchell proteger a sua casa de pessoas desconhecidas. Nesta nova vida, vejo a minha ignorância com um misto de encanto e pena. Quando contactei o autor, o diagnóstico do menino ainda estava a ser processado e um programa de intervenção precoce estava em construção. Só o facto de Mitchell ter concedido a entrevista, ainda que à distância, já foi um acto de generosidade. Não fui capaz de compreender a mensagem que me foi transmitida na altura e, por isso, não senti a gratidão devida. Mas gosto de pensar que os textos unem as pessoas independentemente do tempo e do espaço, como no livro Atlas das Nuvens (publicado em Portugal em 2012 pela Presença). Fantasio que uma marca invisível, talvez em forma de cometa, aproxime pessoas com experiências parecidas. E isto atribui, subitamente, um sentido formidável à minha nova e antiga vida.