Ortorexia nervosa: quando a alimentação saudável se torna uma obsessão

Há uma pressão cada vez maior para comermos de forma saudável. Mas isso não é bom? Sim e não. Para muitas pessoas, pode ser um incentivo para melhorarem os seus hábitos alimentares. Mas, para outras, gera uma obsessão.

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Daniel Arriola/Unsplash

Durante a maior parte da minha vida, não sabia o que era comer da forma dita “saudável”. Quando comecei a interessar-me pelo tema — que mais tarde me levaria a tirar o curso de health coach — percebi que tinha andado a fazer tudo “mal”. Senti-me a despertar de uma vida de enganos e equívocos, mas agora era hora de uma nova era: depois de anos a comer “porcaria”, agora iria comer saudável, comida limpa, comida boa.

Felizmente, esta triste convicção durou pouco tempo, porque rapidamente percebi que comer é um dos prazeres da minha vida, e que não queria deixar de o ter. No curso de health coaching acabei por perceber muito mais, nomeadamente que ter uma alimentação saudável não significa viver a contar calorias, renunciar para sempre aos doces ou fugir a sete pés de tudo o que são alimentos altamente processados. E percebi também que a forma como comemos é apenas uma pequena parcela da equação de uma vida saudável.

Por que é que estou a contar tudo isto? Porque há uma pressão cada vez maior para comermos de forma saudável. Mas isso não é bom? Sim e não. Para muitas pessoas, pode ser um incentivo para melhorarem os seus hábitos alimentares. Mas, para outras, gera uma obsessão que se pode tornar perigosa, e que até merece as honras de designação oficial: ortorexia nervosa.

Este conceito — que deriva do grego ortho (correcto) e orexis (apetite, desejo) — foi descrito pela primeira vez pelo médico norte-americano Steven Bratman, em 1997. O autor do livro Health Food Junkies (“Viciados em Comida Saudável”) usou essa expressão para caracterizar doentes com obsessão por uma alimentação saudável. Embora ainda não seja oficialmente reconhecida como uma doença do comportamento alimentar (como a bulimia ou a anorexia, por exemplo), apresenta várias características que a empurram para esse espectro.

Regra geral, na ortorexia nervosa, há uma preocupação excessiva com a qualidade e a pureza dos alimentos — o chamado “clean eating” (“comida limpa”) — que vai levando a restrições alimentares cada vez mais excessivas. Isto acaba por conduzir à eliminação de vários alimentos ou grupos alimentares que são vistos como “maus” ou “impuros”, o que pode gerar deficiências nutricionais e, consequentemente, ter um impacto negativo na saúde.

Poderia dar um exemplo fictício, mas vou falar-vos no meu caso: Quando meti o “chip” saudável, comecei a comer muito mais vegetais, cortei no açúcar e nas gorduras saturadas, evitei alimentos processados, troquei os cereais refinados por cereais integrais, e deixei de beber os poucos refrigerantes que ainda bebia. Até aqui, tudo óptimo, afinal, estes são os princípios de uma alimentação mais saudável. O problema é que as regras que me auto-impunha foram ficando cada vez mais radicais: primeiro, decidi eliminar o glúten, depois os lacticínios. Mais tarde, quis pôr de lado a carne e o peixe, não por questões éticas (sou sincera), mas sim porque via em todo o lado que a dieta vegetariana era mais saudável.

Felizmente, nunca fui demasiado radical em nenhuma das minhas empreitadas, porque continuava a dar as umas “facadinhas” fora de casa, mas muitas vezes sentia-me culpada por isso. Não tive ortorexia nervosa, mas para lá caminharia certamente. Isto já foi há bastante tempo, e na altura nem sabia o que isso era. Mas a realidade é que, hoje em dia, consigo identificar este quadro à minha volta. Infelizmente, em mais pessoas do que gostaria.

Identificar os sinais de alerta

Como podemos saber se estamos com ortorexia ou se alguém que conhecemos está? Como não é reconhecida ainda como uma doença, não há critérios de diagnóstico oficialmente estabelecidos. Mas há vários sinais de alerta:

  • Evita comer alimentos ou grupos alimentares que considera “maus” ou “impuros”? Tem regras rígidas e inflexíveis em termos alimentares?
  • A comida é a sua primeira preocupação, e gera stress ou ansiedade?
  • Sente que a sua imagem corporal e a sua auto-estima dependem do quão fiel se mantém às suas regras alimentares?
  • Passa grande parte do tempo a planear ou a preparar refeições?
  • Passa grande parte do tempo preocupado com a qualidade ou a pureza da comida que come, ou tem sentimentos de ansiedade ou medo relativamente à comida ou à hora da refeição?
  • Usa a alimentação saudável como um critério para julgar as outras pessoas? Sente-se superior a elas devido ao seu tipo de alimentação?
  • Sente receio de que um “deslize alimentar” faça com que as outras pessoas não o respeitem ou gostem de si?
  • As suas preocupações em torno da alimentação limitam-no de alguma forma, nomeadamente na sua vida social e nas suas relações pessoais e familiares, ou até no trabalho? Evita, por exemplo, comer em restaurantes ou em casa de amigos por causa disso?
  • Costuma sentir-se culpado ou castigar-se a si próprio quando come um alimento “mau”, deixando por exemplo de comer ou restringindo a sua dieta no dia seguinte?
  • Os seus receios em torno da “pureza” da comida limitam-no a experimentar novas comidas em relação às quais sente curiosidade?
  • Foca-se excessivamente em ver os rótulos de todos os alimentos que compra ou consome?
  • Sente-se desconfortável ao comer alimentos preparados ou cozinhados por outra pessoa, por não saber o que pode lá estar?
  • Sente necessidade de fazer exercício físico diariamente para compensar ou justificar a ingestão alimentar?
  • Menciona que tem alergia ou intolerância alimentar sem o devido diagnóstico clínico para justificar a exclusão de determinado grupo de alimentos (ex: intolerância ao glúten para justificar não comer pão, massa, etc.)?
  • Evidencia sinais físicos de malnutrição ou perda de peso excessiva?

Claro que quem sofre de ortorexia nervosa não tem de apresentar estes sinais todos, e muitos deles passam quase despercebidos à luz da nova moda da alimentação saudável, sobretudo se estivermos rodeados — ou nos formos rodeando — de pessoas que partilham da mesma visão que nós em matéria alimentar. É por isso que o diagnóstico é tão difícil. Quanto às causas, também podem vir de vários lados.

Ir à raiz do problema

Ao contrário do que acontece com outras perturbações do comportamento alimentar, como a anorexia nervosa ou a bulimia, a ortorexia nervosa não “nasce” de uma preocupação com o peso, ou em ter o peso ideal. Poderíamos falar mais de uma preocupação com a saúde, mas, na realidade, tal como acontece na anorexia e na bulimia, a relação com a alimentação é mais um sintoma do que o problema ou a causa. A origem tende a ser de ordem emocional.

A ortorexia nervosa aparece muito associada à necessidade de assumir o controlo (e a alimentação é algo mais facilmente controlável por nós), a problemas de auto-estima, a uma personalidade perfeccionista e/ou à falta de autocompaixão.

Pode também desenvolver-se na sequência de eventos traumáticos, pelos quais nós passámos ou vimos alguém que amamos passar (ex: cancro, diabetes, doenças crónicas ou até a morte), os quais associamos a más escolhas alimentares. E pode ainda ser a outra face da moeda para quem está a atravessar ou a recuperar de uma perturbação alimentar como a anorexia ou a bulimia. Não é difícil perceber como. Todas estas perturbações se alimentam de regras rígidas e da ideia de que há alimentos bons e alimentos maus. Infelizmente, essa é uma ideia que está em alta nos dias que correm.

Vivemos numa cultura onde se promovem dietas e detoxs disto e daquilo, onde há teorias alimentares para todos os gostos (vegan, paleo, keto, etc.). Onde alguns alimentos (como o glúten ou os lacticínios) foram elevados a arqui-inimigos. Onde os feeds das nossas redes sociais são inundados por corpos “fit” e receitas “clean”. E ter uma alimentação saudável não tem de passar por nada disto.

A influência das redes sociais é particularmente preocupante. Um estudo realizado em 2017, nos EUA, concluiu que uma maior utilização do Instagram está associada a uma maior tendência para a ortorexia nervosa, alertando ainda para a influência que as “celebridades” têm neste campo.

O que comemos é, e sempre foi, uma forma de identidade, sobretudo cultural, mas agora é também uma forma de identidade social. Entrar para a comunidade do “clean eating” e da alimentação saudável está na moda. Mas o preço a pagar pode ser alto. Seguir obsessivamente regras alimentares, limitar a nossa vida social por causa disso ou sentir culpa depois de comer um bolo, nada disto traz saúde. Nem ao corpo, nem à mente.


Health Coach, autora do projecto About Real Food

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