Governo ameaça Tory Burch com tribunal e estilista retira a camisola poveira da sua loja online
Produto desapareceu do site de Tory Burch pouco depois de Ministra da Cultura anunciar que recorrerá às vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender esta peça de artesanato. Também a Bordallo Pinheiro, face a peças da estilista em tudo semelhantes às suas, equaciona os passos a dar.
O Ministério da Cultura anunciou esta sexta-feira que “tomou a iniciativa de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural português”. Num curto comunicado enviado à imprensa, a ministra Graça Fonseca explica que já comunicou essa intenção ao município da Póvoa de Varzim após ter tomado conhecimento das suspeitas de uma eventual apropriação abusiva de um importante património imaterial português. Já depois desta ameaça, a loja online da estilista deixou de dar acesso à camisola “inspirada” na poveira.
A iniciativa do Ministério da Cultura surge na sequência da divulgação, pelo PÚBLICO, de que a estilista norte-americana Tory Burch estava a vender, sem qualquer atribuição à origem, camisolas poveiras, ou imitações destas, por 695 euros. Depois de outras movimentações, quer por parte da junta de freguesia da Póvoa e do município, e da forte pressão de inúmeras pessoas nas redes sociais, a empresa tentou conter os danos propondo um acordo à autarquia, e mudou a identificação do produto. Que, continuando a ser um plágio evidente de uma das muitas camisolas produzidas na Póvoa de Varzim, passou a denominar-se em inglês “Póvoa de Varzim Inspired Sweater”, o que não satisfez muitos elementos desta comunidade piscatória.
O próprio município já fez saber que não se contenta com um pedido de desculpas, e aguardava, nesta quinta-feira, a proposta de acordo para perceber em que termos a empresa da estilista estaria disponível para corrigir uma falha grave - que ela assume como um erro inadvertido pelo qual pretende, agora, ajudar a valorizar as mulheres que a produzem. Na Póvoa, um original feito por artesãs ronda os 70 ou 80 euros, na loja de Burch, a “inspiração” custa quase dez vezes mais.
Autarquia agradece apoio do Estado
O caso provocou comoção no país, e a reacção do executivo de António Costa - que já usou uma destas camisolas, numa campanha eleitoral, na cidade – chegou esta sexta-feira. “A valorização, protecção, preservação e salvaguarda do património imaterial português, como um importante activo cultural e económico, é uma das prioridades deste Governo. Para esse efeito, o Governo aprovou recentemente a Estratégia Nacional para o Saber Fazer Português e encontra-se, neste momento, a criar a Associação para o Saber Fazer”, explica Graça Fonseca. Acrescentando estar, neste caso, determinada “a agir em conformidade na protecção deste Saber Fazer português”.
“A ministra da Cultura, Graça Fonseca, tomou a iniciativa de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural português. O Governo, tendo comunicado a sua intenção à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, fará o que estiver ao seu alcance para que quem já reconheceu publicamente o seu erro não se demita das suas responsabilidades e corrija a injustiça cometida, compensando a comunidade poveira”, avisa o Ministério, em comunicado.
Ouvido pela agência Lusa, o presidente da Câmara da Póvoa de Varzim, Aires Pereira, explicou que, juntamente com o Ministério da Cultura, está de facto a ser estudada uma “acção judicial, junto do Tribunal de Nova Iorque, para exigir a reparação dos danos para a cultura portuguesa e da Póvoa de Varzim. O Governo português, e bem, assumiu isto como uma questão de Estado. Fico satisfeito por ver que, quando é posto em causa o nosso património, também nos conseguimos unir tal como aconteceu nestes dias em prol da camisola poveira”, disse Aires Pereira.
Desculpas foram “remendo curto"
O autarca ouviu, pessoalmente, o pedido de desculpas dos representantes portugueses da estilista, que se assumiram a vontade de estabelecer um protocolo com o município poveiro para apoiar as artesãs locais – cujos termos deveriam ter sido entregues pela empresa na quinta-feira, o que não chegou a acontecer. Mas este tlefone, e o pedido de desculpas, por um alegado “erro”, é para Aires Pereira um “remendo curto” para o que aconteceu. “Parece-me que estavam a ganhar tempo para verem se a pressão baixava, mas agora com o envolvimento do Estado tudo muda de figura. Não podem pensar que com uma esmola resolvem os danos gerados”, disse Aires Pereira.
O assunto “não pode ficar por aqui”, vincou, insistindo que “não é apenas uma questão desta camisola, que é um símbolo da Póvoa de Varzim. É o facto da utilização abusiva de algo que é nosso, que faz parte da cultura e identidade nacional. Felizmente que as redes sociais, que tantas vezes se unem em torno de não-questões, conseguiram, desta vez, unir-se e agir na defesa de algo que nos toca a todos”, concluiu Aires Pereira.
Com os holofotes da comunidade portuguesa voltada para a sua loja, várias pessoas perceberam que a camisola poveira não é, de facto, a única peça de origem nacional que ali aparecia vendida como produto original. Desde quinta-feira que, nas redes sociais da empresária, muitos portugueses lhe têm chamado a atenção para as similitudes evidentes entre uma colecção de loiça em cerâmica e a famosa colecção de Bordallo Pinheiro, na qual se inclui a couve-jarro, ou a couve-caneca, ou a couve-terrina.
"Há coisas que valem mais que o preço"
O PÚBLICO também questionou o gabinete de imprensa de Tory Burch sobre esta outra aparente apropriação – os seus produtos, neste caso surgem com referências a uma ceramista de Palm Beach, na Florida – mas na volta do correio apenas recebemos o mesmo tweet com que a empresária tentou conter os danos provocados pelo escândalo da camisola e no qual não assume que a sua peça é um plágio, falando apenas num erro de não atribuição de uma alegada “inspiração”.
A própria empresa Bordallo Pinheiro, do grupo Vista Alegre, começou por levar com humor esta outra tentativa de apropriação dos desenhos do seu criador, a preços muito mais caros que os originais. O Zé Povinho não foi chamado para a liça, mas o manguito surge de outra forma. “Cá para nós há coisas que valem bem mais que o preço. O apreço pela criatividade, a tradição, a originalidade, a história. Traços que definem quem nós somos enquanto marca e enquanto comunidade. Por isso a nossa recompensa maior é a vossa preferência, lealdade e reconhecimento do que é autêntico. E o mesmo vale para tudo o que é nosso. Podem tirar a tradição do poveiro, mas nunca tirarão o poveiro da tradição!”, escreve a empresa nas redes sociais, associando-se à luta dos poveiros e promovendo, numa ligação, a sua própria colecção.
Contactada pelo PÚBLICO, a administração da Bordallo Pinheiro disse estar a analisar o caso Tory Burch para “tentar perceber quais são as melhores diligências a tomar”. Com uma certeza: “alguma coisa vai ser feita”, garantiu Nuno Barra, administrador da empresa pertencente ao grupo Visabeira.
Este responsável lamenta o episódio que, segundo assevera, “não é, infelizmente, caso único”, sendo certo que, na maioria das vezes, a ameaça surge, precisamente, em território nacional. A marca secular das Caldas da Rainha debate-se com sucessivos casos de contrafacção dos seus produtos, situação que já a levou a expor o caso junto das entidades competentes. Com Maria José Santana