Digitalizar, o que mais?

O que é assustador pensar é que descobriram que tudo se pode fazer desta maneira, sem sair de casa, na mesa da sala, no quentinho do sofá, ou mesmo na cama, ignorando tudo o resto do mundo e o que pode acontecer lá fora.

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Francisco Romao Pereira

Acabadinhas de abrir, aí estão as escolas, bem ao jeito de ontem a acolher as crianças de hoje!

Ao longo deste tempo de confinamento, lá foi cada professor, cada escola e cada família tentando da melhor maneira que conseguiam colaborar uns com os outros no sentido de conseguirem em conjunto fazer avançar a educação dos seus filhos e alunos. São de louvar todos os esforços de todos os agentes educativos. Todas as escolas tiveram, com maior ou menor incidência diária ou semanal, aulas ou outros suportes educativos online.

Sabemos que muitos descobriram o digital e que acreditam que é a nova revolução educativa. Tudo se digitaliza e tudo se consegue fazer à distância. As barreiras do particular e do privado foram, em boa parte, quebradas e muito poucos se importam com isso. Afinal, há rotinas privadas que todos fazemos. O que é assustador pensar é que descobriram que tudo se pode fazer desta maneira, sem sair de casa, na mesa da sala, no quentinho do sofá, ou mesmo na cama, ignorando tudo o resto do mundo e o que pode acontecer lá fora. Tudo tem as suas vantagens e desvantagens. E que as vantagens sejam aproveitadas, mas que não se retorça para bom e bem o que nenhum proveito traz a favor do facilitismo e sedentarismo.

Acredito que precisávamos mesmo deste retiro. O nosso tempo não é o tempo da Criação e do Criador nem contemplamos a nossa dimensão na infinitude do universo. Este tempo foi e ainda está a ser de mudança e adaptação simultânea, de encontro de novo propósito, de perceber que precisamos de um novo modelo de actuar, de ter um olhar renovado das nossas memórias. Precisamos de actualizar práticas, mas sobretudo intenções e conseguir fazer a pergunta com calma: o que é que está aqui em jogo? Onde queremos chegar? De onde estamos a partir? Este novo tempo conseguiu fazer-nos perceber que muito do que fazíamos não precisávamos de fazer, não fazia sentido, nem era útil, nem real, nem por vezes, verdade.

A capacidade de adaptação do ser humano é fantástica e ela traz muitas vezes novas dependências e hábitos, aquilo a que chamamos a criação de novas necessidades. Espanta-me, no negativo, a insistência de digitalização de tudo, na ânsia de nada perder e de tudo converter. Se funciona? Funciona, mas as perdas são grandes, talvez ainda não irreversíveis. Os anúncios e exemplos de planos de digitalização de escolas, do ensino e de todos os processos inerentes à actividade, são assustadores. Qualquer actividade virou online, desde a actividade física à educação artística. Vendem-se programas específicos desta pseudomodernização tecnológica. Quem rema contra a maré faz-se ouvir na especialidade, como pediatras e professores de Educação Física conceituados a reclamar o ar livre, a socialização, o contacto com a natureza, com a terra, com as árvores. E ainda bem. Ainda não vi nada nesta corrente a propósito das artes e da espiritualidade. E estas são promotoras de cultura, que é aquilo que nos identificará daqui a umas boas centenas de anos.

A educação artística pode ser feita online, como situação de recurso e nada mais. O contacto com as tintas, papel e outros suportes, com os outros e os seus pareceres e opiniões, a experimentação, a satisfação ou ânsia de fazer melhor e continuar, é de extrema importância para o desenvolvimento humano. O mesmo com o desenvolvimento espiritual.

Todas as actividades, ou quase todas se conseguiram fazer com recurso ao digital e mantendo o contacto através do ecrã, mas a base da espiritualidade é a relação, seja consigo próprio, com os outros e com a sua Divindade.

A digitalização das escolas será a digitalização da vida e da cultura das próximas gerações. O que estamos a hipotecar? Há quem seja muito pró-activo e reflicta pouco, não goste de se distanciar para pensar, se calhar por medo do que possa concluir. Mas só com algum afastamento conseguimos ver a big picture e ter um enquadramento de futuro.

Os retiros para reflectir fazem falta, fazem bem. A coragem para não perder de vista as suas conclusões é essencial e o plano de acção para as implementar por ordem de prioridades é determinante. Que abram as escolas! São espaços seguros! Que brinquem as crianças! Que socializem! Que construam a sua identidade, que marquem os acontecimentos das suas vidas, fazendo cultura que se perpetua! Que se voltem a encontrar e a desencontrar! Ao vivo, com cheiro, toque e realidade.

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