O fecho
A montra da Júlia era como aquelas pessoas que não sendo imediatamente bonitas, se tornam a cada dia insuportavelmente mais cativantes.
Recordo muitas vezes o homem que me disse que tinha viajado pelo mundo inteiro mas que um dia descobriu que nunca tinha olhado devidamente para os telhados da rua dele. E eu descolei o olhar do chão.
Vou reconstituir os passos da minha memória até chegar à Júlia. Há pessoas que tal como os cometas são visíveis por tempo incerto.
E ela foi uma delas.
A loja já ali estava há muito mas eu nunca tinha reparado na montra discreta. Aparentemente discreta. A montra da Júlia era como aquelas pessoas que não sendo imediatamente bonitas, se tornam a cada dia insuportavelmente mais cativantes. Aconteceu-me reparar na montra e passar a subir aquele degrau com ansiedade. Era mais mundo. Muito mais do que cabia naquele rectângulo envidraçado.
Júlia gostava de África aonde terá feito muitas viagens, interiores e das que nos levam a coleccionar memórias e bagagem. Trazia com ela muitas histórias, colares, máscaras, pulseiras. Qualquer olhar distraído chamaria àquilo «bugigangas» e eu, apesar de achar graça à palavra, sei que o que ali estava, era muito mais do que isso.
A primeira vez que olhei para a montra tinha um manequim vermelho coberto de colares sobrepostos. Entrei e perguntei se me poderia mostrar um e outro, vários, fiadas de contas a contas com o meu fascínio pelo que via.
Júlia não foi imediatamente simpática. Era contida. Abria as pequenas vitrinas onde encaixava o mundo de que gostava e dali tirava o que se lhe pedia embora pudesse acrescentar mais contas ao conto inicial. Foi muito isso que me fez lá ir, para além do que estava nas vitrinas.
Começámos a visitar a loja todas as semanas, ao cair de vários dias de trabalho, com mais vontade de encher os olhos de coisas ainda sem história nas nossas mãos.
Júlia começou a revelar-me mais dos objectos. Eu era capaz de lhe dizer que gostava ‘daquele' colar por causa do fecho e ela acertou-me no coração quando disse: “é pelo fecho que se vê a qualidade de uma peça”. O remate. Como quem vê num pequeno gesto, o carácter dos outros. O ‘fecho' dos outros é determinante, sim.
Almoçávamos e sem que víssemos propriamente os telhados da rua, íamos à procura de mais objectos que com eles trouxessem a história da Júlia. E vínhamos sempre com as mãos cheias de qualquer coisa.
Um dia, a loja estava fechada. E voltámos na semana seguinte. E na semana seguinte a loja também estava fechada. E fomos perguntar pela Júlia, ali ao lado, onde não entraríamos se não fosse pelo tanto que queríamos saber dela.
Júlia adoecera e não havia muito mais notícias.
Uma semana depois voltámos à loja e ela ali estava com o filho, um rapaz muito reservado que também fazia parte da história da sua mãe. Júlia evidenciava a doença que a afastara temporariamente dali mas não se falou do assunto: só da baquelite, do âmbar, do osso, dos fechos, de África talvez.
E lá trouxe eu para casa mais um pedaço de qualquer coisa. Um nome, um episódio associado. “Sabe que a Elizabeth Taylor usava estas jóias?” E meses depois andámos à procura dessas ‘bugigangas’ em Nova Iorque. Por causa da Júlia. Por causa da sua montra onde estava tanto mundo.
Quando voltámos à loja, já só lá estava o filho. A mãe estava internada e eu agarrei no meu pequeno Caderno que lhe queria oferecer e pedi-lhe que o entregasse. Deixei-lhe também o meu número. À espera de notícias dela.
Dois dias depois, com o céu escuro de fim do dia, recebi uma chamada dele: “Era para lhe dizer que a minha mãe morreu. Partiu em paz” – penso que foi o que ele me disse, mas a memória e os olhos ficaram rapidamente turvos. Nesse dia chorei os dias todos em que tive a sorte de me cruzar com a Júlia e o seu mundo que não cabia em vitrina nenhuma por ser tanto.
Voltámos à loja onde está agora o filho. Continuamos a trazer parte da bagagem dela cá para casa. E havemos de voltar em breve.
Que os fechos sejam um bom remate.