Autista? Antes fosse!
A inclusão verdadeira, diferente daquela que enche relatórios e que é repetida até à náusea por tantos supostos peritos, passa exactamente por começarmos a retirar à palavra “autismo” a conotação negativa e de ofensa.
O meu nome é Carmen, tenho 34 anos e sou mãe de um menino surdo profundo. Não sou mãe de um menino com défice auditivo, nem de um menino que se relaciona com o mundo de forma diferente. O meu filho não tem uma particularidade nem é uma criança especial. O meu filho é surdo.
Declaração de interesses feita, confesso-me totalmente incapaz de entender a necessidade quase generalizada de recorrer a eufemismos e misticismos para designar condições e deficiências que já estão nomeadas pela ciência. Mas sabem uma coisa? Sou ainda mais incapaz de entender como é que se transformam essas designações em adjectivos e como é que se normaliza a sua utilização na forma de insulto ou tentativa de diminuir alguma coisa. Já Marta Temido, a nossa ministra da Saúde, não parece partilhar das minhas inquietações e, como tal, decidiu dizer duas vezes, em directo num programa de televisão, que “a governação não é autista” porque ouve as pessoas.
E eu agora estou aqui, aflita, sem saber se hei-de continuar esta crónica a explicar detalhadamente à senhora ministra por que é que o que afirmou é um disparate do ponto de vista científico ou se opto por lhe pedir que faça uma pesquisa por “autismo” no Google e veja se consegue descobrir sozinha.
É que, reparem, não estamos a falar de alguém sem formação a quem devemos desculpar certas barbaridades porque até tem escrito no perfil de Facebook que “estudou na universidade da vida”. Estamos a falar de uma ministra, mestre em Economia e Gestão da Saúde e doutorada em Saúde Internacional, que, por acaso, é responsável pelo ministério com maior responsabilidade na área das questões relacionadas com a população neuroatípica em Portugal.
E, já que endureci o tom, deixem-me deitar mais um bocadinho de lenha na fogueira e dizer que, tivesse a ministra utilizado expressões como “gay” ou “negro” com a mesma conotação com que utilizou “autista”, e já teríamos partidos aos gritos na Assembleia da República, associações a marcar marchas e protestos, gente a rasgar as vestes nas ruas e as redes sociais inflamadas. E, sim, tudo isto seria compreensível. O incompreensível é o descaso total nesta questão em particular. O incompreensível é que em 2020 poucos se preocupem verdadeiramente com a inclusão destas pessoas. E a inclusão verdadeira, diferente daquela que enche relatórios e que é repetida até à náusea por tantos supostos peritos neste país, passa exactamente por começarmos a retirar à palavra “autismo” a conotação negativa e de ofensa. Mas aquela que deveria ser a primeira a dar o exemplo falhou calamitosamente.
Marta Temido diz que a governação não é autista. Talvez na formação-base em Direito a senhora ministra não tenha aprendido que o espectro do autismo é imenso e que, dentro dele, cabem indivíduos com capacidades de percepção e atenção muito superiores às da população em geral. E, se calhar, com uns quantos autistas desses no Governo, não teríamos um SNS preso por arames à espera de perceber se vai ou não aguentar-se quando o pico da covid-19 se encontrar com o pico da gripe sazonal; não continuaríamos a ter milhares de pessoas sem médico de família; e teríamos, finalmente, um investimento real nas áreas da saúde mental e da reabilitação.
A ministra da Saúde diz que a governação não é autista. Eu digo que antes fosse.