Um obeso não tem de ser vítima de preconceito, defendem novas directrizes canadianas
No Canadá há novas recomendações para a abordagem à doença crónica. As ideias não são novas, mas em Portugal continua a haver problemas na formação dos profissionais.
A obesidade não deve ser determinada somente pelo peso. Esse é um dos pontos fulcrais das novas directrizes para o tratamento da obesidade elaboradas pelos profissionais de saúde da Canadian Association of Bariatric Physicians and Sergeons (associação que reúne médicos e cirurgiões bariátricos canadianos) e pela Obesity Canada, associação sem fins lucrativos.
Os autores argumentam que a obesidade é uma doença crónica que deve ser definida pela saúde em termos globais e não apenas pelo peso. Embora tenham sido emitidas agora as novas normas para os profissionais daquele país, as ideias que as baseiam não são novas. “Estas novas guidelines, na realidade, vêm ao encontro daquilo que já têm sido as orientações de outras sociedades científicas dedicadas ao estudo da obesidade, nomeadamente a europeia e norte-americana”, refere Rosário Monteiro, investigadora portuguesa na área da obesidade.
Ou seja, a “grande vantagem” da publicação que surge agora é que faz “uma revisão aprofundada e uma actualização” das evidências que tornam “mais sólidas” as recomendações já existentes noutros países. “Isto reforça a necessidade de alteração do paradigma na abordagem à obesidade”, resume a investigadora e professora universitária. Ainda assim, é um sublinhar importante de que “a obesidade é uma doença crónica por si só e não apenas um factor de risco para o desenvolvimento de outras doenças”, define Rosário Monteiro.
As recomendações apelam para que os médicos deixem de se basear apenas no índice de massa corporal (IMC) na hora de fazer o diagnóstico. De facto, justifica Rosário Monteiro, “o IMC tem uma correlação grosseira com a saúde dos indivíduos”. Uma vez que o indicador se refere apenas a uma relação entre a altura e o peso, é possível que “dois indivíduos que sejam considerados obesos pelo IMC tenham consequências completamente diferentes da acumulação de tecido adiposo”.
Além do peso, os especialistas recomendam a utilização de escalas que demonstrem o quão deteriorada está a saúde de cada doente. Para isso é preciso perceber se há limitações físicas, médicas e psicológicas associadas aos dados do IMC. Perceber questões como “se o indivíduo já tem pré-hipertensão, pré-diabetes ou se já tem falta de ar quando faz exercício moderado” são “fundamentais” para “desfocar” a importância do peso na obesidade.
Formação é lacuna em Portugal
É também para sublinhar o carácter crónico da doença que servem as novas normas canadianas. Em Portugal, já se caracteriza a obesidade como uma doença desde 2004, sendo que o país “foi um dos primeiros a fazê-lo”, afirma Rosário Monteiro. Porém, isso não tem sido globalmente traduzido em acções práticas, denuncia. E justifica: “Nós sabemos muito bem que a obesidade se associa a muitas doenças e sabemos muito bem tratar essas doenças, mas depois sabemos muito mal tratar a obesidade. Isso não nos é ensinado.”
A professora universitária na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto admite que essa é uma das lacunas na formação dos médicos, quer a nível pré-graduado, quer pós-graduado: “O que está a ser uma grande barreira é a formação dos profissionais de saúde que não é ainda muito adequada a esta realidade.”
“Temos a ideia de que é necessário aumentar a actividade física e reduzir a ingestão de alimentos, mas depois não sabemos explorar as questões motivacionais, saber a causa, a estratégia nem fazer uma monitorização constante e longitudinal da evolução da doença para evitar um retrocesso”, demonstra a especialista em obesidade, doença que afecta 23% dos portugueses. Em Portugal, 67,6% da população acima dos 15 anos tem excesso de peso, ou seja, é obesa ou está num estado de pré-obesidade.
Falta também uma abordagem multidisciplinar, embora já “esteja demonstrado que a sua eficácia é muito maior”. Seria vantajoso, por exemplo, recorrer a psicólogos ou psiquiatras “quando se tratam de distúrbios do comportamento alimentar ou outras patologias do foro psicológico”, ao mesmo tempo que se tem uma actuação no eixo médico, nutricional e dos especialistas em exercício físico. Para a investigadora, seria “fundamental” melhorar o atendimento das pessoas com obesidade nos cuidados de saúde primários.
Estigma é “grande prejuízo na abordagem aos doentes"
Se as lacunas na formação existem, também o estigma perante a obesidade continua a prevalecer entre os profissionais de saúde a nível internacional. Essa conclusão é referida nas novas directrizes elaboradas para os médicos canadianos e também Rosário Monteiro admite que os estudos mostram que “de uma forma geral, muitas vezes atribuímos aos doentes com obesidade a responsabilidade, achamos que são pessoas com menos motivação para a alteração de comportamentos”. Embora afirme que não existem grandes evidências para a presença desse estigma entre os profissionais portugueses que lidam com doentes com a doença, não exclui a hipótese de acontecer “mesmo que inconscientemente”.
Enquanto reconhece que muitas vezes se associe a obesidade apenas a maus hábitos alimentares e sedentarismo - uma visão que tem sido “um grande prejuízo na abordagem aos doentes” -, Rosário Monteiro sublinha que “cada vez mais se tem vindo a reconhecer que há múltiplos determinantes de obesidade”. Ou seja, existe uma série de outros factores que não são dependentes da vontade do indivíduo.
E que factores podem ser esses? “Isso pode começar antes de a pessoa nascer”, começa por explicar a especialista. Alguns estão associados ao ambiente dentro do útero ou à alimentação materna durante a gravidez, por exemplo. “Até temos ideia de que a obesidade pode estar relacionada com factores epigenéticos, o que é anterior à própria concepção”, contrariando a ideia de que depende apenas da motivação dos doentes.
Por outro lado, também as condições socioeconómicas são importantes porque as pessoas com menores rendimentos e escolaridade “têm maior probabilidade de vir a ter um IMC mais elevado”. A isso junta-se a exposição a problemas ambientais que “podem modificar a maneira como acumulamos a energia e o comportamento do tecido adiposo na predisposição para a doença”, acrescenta a investigadora. Também as rotinas de sono e o stress têm impacto. Porém, “obviamente que a alimentação é um factor importante”, remata.