Práticas nefastas contra mulheres e meninas são uma crise “silenciosa e endémica” ainda longe de desaparecer

A prevalência de práticas como a mutilação genital feminina e os casamentos infantis tem diminuído, mas o crescimento populacional significa que o número de raparigas submetidas a estas práticas continua a subir, alerta um relatório do Fundo das Nações Unidas para a População.

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Uma média de 3400 milhões de dólares “bem investidos” por ano, entre 2020 e 2030, poderia poupar 84 milhões de raparigas a casamentos infantis e à MGF EPA/RAMINDER PAL SINGH

Todos os dias, em média, 33 mil raparigas são obrigadas a casar. Por todo o mundo, ao longo deste ano, mais de quatro milhões de meninas serão submetidas a um corte dos genitais. Devido a décadas de negligência de filhas em relação aos filhos e selecção com base no género, estima-se que a população mundial tenha perdido 142,6 milhões de raparigas que poderiam ter sobrevivido num mundo sem discriminação.

“Todos devíamos estar indignados”, reage Natalia Kanem, directora executiva do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA, na sigla em inglês), na apresentação à imprensa do relatório Estado da População Mundial 2020. O relatório anual desta agência da ONU, que há décadas se dedica a recolher dados sobre população e saúde sexual e reprodutiva, dedica-se este ano às práticas nefastas que afectam sobretudo as mulheres, como o achatamento dos seios ou os chamados tabus menstruais, abordando com profundidade aquelas três que mais pessoas afectam todos os anos: mutilação genital feminina (MGF), casamentos infantis e preferência por filhos do sexo masculino. A apresentação pública em Portugal tem lugar na tarde desta terça-feira, em Lisboa, numa sessão organizada pela associação P&D Factor com o instituto Camões que contará com a presença de deputados de vários partidos e ainda Fatumata Djau Baldé, presidente do Comité para o Abandono de Práticas Nefastas da Guiné-Bissau, país onde 45% das mulheres foi submetida à MGF.

Se por um lado o objectivo traçado pelo UNFPA era acabar com as práticas nefastas até ao final desta década, há ainda um longo caminho a percorrer. “Enquanto as percentagens de prevalência das práticas nefastas estão a baixar, os números absolutos de raparigas submetidas a estas práticas continuam a subir, em grande medida devido ao crescimento populacional”, alerta a médica e responsável pelo UNFPA. Estima-se que, na actualidade, 650 milhões de mulheres e raparigas em todo o mundo se tenham casado antes de completar 18 anos e que 200 milhões tenham sido submetidas à MGF. Entre as mais de 140 milhões de mulheres que poderiam estar vivas num mundo em que a preferência por filhos homens não fosse fatal para as meninas, 118 milhões referem-se apenas às estimativas na China e na Índia, os dois países mais populosos do mundo. Kanem apela a esforços mais firmes da parte dos governos: “isto requer mais investimento naquilo que sabemos que funciona, ou não atingiremos os nossos objectivos”. 

“Não podemos deixar nada, incluindo a pandemia de covid-19, colocar-se no nosso caminho”, pede a responsável — mas o facto é que já se colocou. Em vários países, há relatos de que o confinamento (com as meninas longe das escolas e os projectos comunitários parados) foi ocasião para famílias submeterem as suas filhas à MGF em surdina. A pobreza extrema que se abateu sobre algumas comunidades fez com que mais famílias, muitas das quais com muitos filhos para alimentar, decidissem entregar as filhas em casamentos arranjados. Como refere o relatório, o casamento infantil “está intimamente ligado a níveis mais altos de fertilidade e à perpetuação da pobreza”. Mas, ao contrário dos rapazes, que em algumas culturas também são forçados a casar, as raparigas têm a sua vida em jogo quando o casamento precoce também significa que poderão “engravidar, querendo ou não, antes que o seu corpo esteja pronto para isso”, o que “levanta uma série de consequências” para as meninas e para os bebés.

Numa altura de recuos na promoção de políticas activas em matéria de planeamento familiar, o relatório do UNFPA recorda o compromisso assumido na cimeira de Nairobi, no final do ano passado: acabar com a necessidade não atendida de contraceptivos; acabar com as mortes maternas preveníveis; acabar com a violência com base no género, onde se inclui a MGF e os casamentos infantis. Os três “zeros”, como descreve a portuguesa Mónica Ferro, que lidera o gabinete do UNFPA em Genebra, e que também vê na covid-19 um obstáculo maior. “Embora o mundo tenha entrado em 2020 com um optimismo renovado”, descreve, “a verdade é que esta pandemia veio revelar o quão frágeis esses sucessos eram e trazer mais uma série de obstáculos e de desafios para atingir os nossos zeros”. 

Práticas nefastas como a MGF são mais prevalentes no continente africano e em alguns países da Ásia, como a Indonésia, e do Médio Oriente. Contudo, trata-se de uma prática que tem lugar em países de todo o mundo, incluindo na União Europeia. O relatório do UNFPA refere Portugal entre os países europeus onde existem comunidades praticantes — em 2015, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género estimava que pelo menos 1300 meninas residentes em Portugal estivessem em risco de ser mutiladas. Recorde-se que, no mesmo ano, um estudo aprofundado do Observatório Nacional de Violência e Género estimava serem cerca de 1800 as meninas com menos de 15 anos já submetidas a esta prática ou em risco de o ser. 

Apesar de em muitos destes países existirem leis que condenam estas práticas, “as leis são apenas um ponto de partida”: “em alguns casos, as leis podem ter o efeito não intencional de levar essas práticas à clandestinidade”. O relatório menciona sinais de que algumas comunidades mais resistentes mantêm estas práticas ancestrais numa “versão moderna”, alerta o relatório, apontando desde a medicalização da MGF, identificada em países como Egipto e Sudão, ao uso das tecnologias de saúde reprodutiva para “aborto selectivo” de fetos do sexo feminino, por vezes contra a vontade das mães. 

Na conferência de imprensa antes da apresentação, esta terça-feira, do relatório "Contra a minha vontade: desafiando práticas que prejudicam mulheres e meninas e impedem a igualdade”, Natalia Kanem resumiu em três palavras o caminho para mudanças e resultados reais: respeitar, proteger, cumprir. Ou seja, combater normas que desrespeitem as mulheres, pôr em prática leis que protejam as meninas e incentivem as famílias a cuidar das raparigas, e exigir dos Estados que cumpram os compromissos internacionais na área da igualdade de género e dos direitos das crianças. Neste ponto, até já se sabe quanto custará atingir estes objectivos: uma média de 3400 milhões de dólares “bem investidos” por ano, entre 2020 e 2030, teria o condão de poupar 84 milhões de raparigas a casamentos infantis ou à MGF.

No fundo, refere a médica, as normas sociais e estereótipos que estão na raiz destas práticas nefastas, ainda que “poderosas e destrutivas”, são apenas ideias, e por isso podem ser mudadas. “Vimos estas ideias mudarem na República da Coreia, em Singapura, na Tunísia”, exemplifica Natalia Kanem, “onde a preferência por rapazes já foi muito forte e em tempos havia muitos mais homens do que mulheres”. O respeito pelos direitos humanos das mulheres e crianças, contudo, tem que ser um valor abraçado pelas comunidades. “Décadas de experiência e estudos mostram que as abordagens da base para o topo são melhores para fomentar mudanças”. “Mudanças orgânicas são mudanças duradouras”, constata.

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