Coronavírus
“A minha filha deixou de me visitar”: retratos do isolamento sénior em tempo de pandemia
“Ela diz que não se perdoaria se me contagiasse, mas eu não sei lidar com isso”, diz Renate, uma mulher viúva de 79 anos, à fotógrafa Marlena Waldthausen, a autora da série fotográfica Corona Blues, que é um retrato do isolamento dos mais idosos em resposta à pandemia de covid-19.
De um dia para o outro, à medida que a epidemia de covid-19 galgava fronteiras nacionais e continentais e assumia contornos de pandemia, a palavra de ordem passou a ser “confinamento”. O sofrimento causado pelo afastamento social afecta pessoas de todas as idades e nacionalidades, mas pode ser mais intenso entre as camadas mais vulneráveis, como é o caso da população mais idosa. “A ideia de haver velhinhos que passaram a viver isolados, presos nos seus apartamentos, comoveu-me profundamente”, confessa a fotógrafa berlinense Marlena Waldthausen, a autora de Corona Blues, uma série fotográfica sobre a experiência do confinamento na terceira idade. Muitos idosos deixaram de sair de casa e de ter contacto físico com irmãos, filhos, netos, amigos. Com a ajuda da amiga e colega Miriam Dahlinger, a fotógrafa recolheu depoimentos que trazem luz sobre os desafios dos mais velhos em confinamento.
“A minha filha deixou de me visitar”, explica Renate, uma mulher viúva de 79 anos residente em Marzahn, que foi retratada por Marlena. “Ela diz que não se perdoaria se me contagiasse. Mas eu não consigo lidar bem com isto.” Renate só se permite ver notícias uma vez por dia. “Fico tão zangada! Eu sei que não vou apanhar [o vírus], tenho a certeza disso. Como poderia? Não posso ver ninguém.” O marido faleceu há um ano e meio; Renate tomou conta dele durante muito tempo. “À vezes, quando estou sentada aqui sozinha, sinto vontade de chorar. O tempo está bonito e quero pegar no meu carro e conduzir até Tegel, para visitar a minha filha Katrin. Fazia isso muitas vezes, ao fim-de-semana, antes da pandemia. Lá, dávamos longos passeios pela floresta. Ela liga-me três vezes por dia; a minha outra filha, Sabine, que vive na Suíça, também me liga várias vezes ao dia. Só hoje estive ao telefone durante três horas. Esforço-me por parecer animada e confiante, elas acham que sim, que estou. Mas, na verdade, estar aqui presa deixa-me muito abatida.”
No terreno, em contacto com os idosos, Marlena Waldthausen concluiu que “muitos se sentem receosos e mesmo zangados com a situação”. Outros, “surpreendentemente, sentem que pouco mudou nas suas vidas e lidam com a situação de forma descontraída”.
Wolfgang, divorciado e a residir num lar, tem medo do contágio. “Há um ano e meio tive uma pneumonia que foi tão grave que tive de ser ressuscitado. Eu estive morto. Sei que se apanhar este vírus, não irei sobreviver.” No lar onde vive não é permitida a entrada de ninguém vindo do exterior e Wolfgang sente-se seguro. “O vírus, que é invisível, deixa toda a gente do lar à beira da loucura. No outro dia, um dos meus vizinhos foi para junto da janela e começou a gritar que queria sair, que não se importava se o deixavam ou não. Não é normal.” O octogenário discutiu com ele. “Queres matar-nos a todos, perguntei-lhe. Ele percebeu. E agora já não quer sair.”
Erwin e Eveline são um casal de 84 anos. “Temos sorte de viver junto à floresta, nos arredores de Berlim. Ainda podemos dar um passeio todos os dias.” Durante uma das suas caminhadas, viram outras pessoas a passar. Ambos pensaram “Cuidado, que vem aí gente!”. “Mas na verdade, somos relaxados. Temos 84 anos, mas não imaginamos sequer que o nosso fim possa estar próximo. Só quando ouvimos que também há jovens a morrer é que nos questionámos se a nossa vez estará para chegar.”
Gisela, de 80 anos, tem três irmãos. “E todos vivem aqui, em Berlim”, explicou. “O meu irmão vive num lar. Ontem ligou-me para me contar que uma das residentes com quem costuma conviver está infectada [com covid-19] e no hospital. O meu irmão é mais velho do que eu cinco anos e tem um coração fraco. Por isso, estou preocupada.” Para celebrar o seu aniversário, que aconteceu em Maio, Gisela organizou uma grande festa. “Aluguei um espaço para estar com família e amigos. Até contratei um mágico – para entreter as crianças e a nós, mais idosos, que, com o passar dos anos, também ficámos mais infantis.” A festa terá sido adiada e Gisela já contava com isso. “Posso adiar, mas não vou cancelar”, explicou. “No convite escrevi ‘O mundo pode estar a acabar, mas nós ainda vamos viver muito tempo. Para o próximo ano, quero ir até à Costa Rica’.”
Os aviões costumavam acordar Anne todos os dias pelas seis da manhã. “Isso deixa-me sempre feliz”, observou. A octogenária prefere os aviões mais pequenos, que fazem menos barulho. “Os grandes fazem lembrar os aviões de guerra. Devido à pandemia, eles deixaram de passar e a minha fisioterapeuta deixou de visitar o lar. Ela vinha três vezes por semana e tínhamos sessões de 20 minutos que me ajudam a manter a mobilidade. Agora tenho o andarilho no quarto a olhar para mim. Gostava de pegar nele, mas sem a minha fisioterapeuta não me deixam tentar.” Anne teme deitar a perder todo o esforço feito até agora.
Isolar os mais idosos do contacto com o exterior parece a solução mais óbvia para os proteger do contágio, de sofrimento físico e/ou de uma morte prematura. O custo dessa solução prática é o sofrimento psicológico e emocional. Marlena, que além de fotógrafa já foi funcionária de um lar, em part-time, e que ponderou mesmo dedicar-se à geriatria, não sabe se o isolamento desta população é a melhor resposta, mas também sente dificuldade em vislumbrar uma alternativa. “Que decisão deve ser tomada quando um vírus desconhecido ameaça a vida de tantas pessoas? Como é que devemos protegê-las? Ao mesmo tempo que temos, inicialmente, pouco conhecimento do vírus, temos de agir rapidamente. Essas decisões terão repercussões a muitos níveis e são difíceis de antecipar. Não gostaria de estar nos sapatos de quem teve de tomar decisões.”
A fotógrafa nunca colocou em risco a vida de nenhum idoso, durante o desenvolvimento do projecto. “Enquanto fotografava, a partir do exterior, à janela, comunicávamos através do telefone ou, se as janelas estivessem bem isoladas, através do vidro.”