Vivo a minha casa ao limite

Quando comemos, dormimos, trabalhamos, brincamos, aprendemos, conversamos, viajamos e convivemos sem sair do mesmo lugar, a que conclusões chegamos sobre as configurações, problemas ou vantagens deste nosso espaço familiar?

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Ricardo Acosta

E, de repente, fomos todos obrigados a ficar dentro de nossas casas o maior tempo possível. E, mais surpreendente ainda, concordamos todos com a ideia. Parece uma boa introdução para um normal filme distópico. Contudo, já todos nós interiorizamos esta desagradável realidade de 2020. Percebemos hoje que a nossa melhor arma para combater uma pandemia como a que estamos a enfrentar é a nossa casa. E como estamos nós a viver tão intensamente a nossa casa? Quando comemos, dormimos, trabalhamos, brincamos, aprendemos, conversamos, viajamos e convivemos sem sair do mesmo lugar, a que conclusões chegamos sobre as configurações, problemas ou vantagens deste nosso espaço familiar? 

A mim, desde que fui atirado ao confinamento, e por defeito da minha profissão, surgiram-me algumas questões sobre o espaço que habito, um apartamento T2 em Braga.

Uma das razões pela qual, há dois anos, escolhemos morar neste apartamento foi a sua exposição solar. Orientado a Sul, proporciona-nos, a mim e à minha família, um grande aproveitamento da luz do sol. No entanto, também tivemos sorte: o nosso apartamento está no 7.º andar, o que possibilita a entrada directa de sol nos dias mais pequenos de Inverno, pois o 6.º andar já o vê barrado pelo edifício de apartamentos situado mesmo em frente. Esta vantagem foi, para mim, obra do acaso.

Esta casa tem quatro janelas, mas apenas uma varanda, a da sala. A varanda, que se quer larga, serve nestes tempos como pequeno lugar exterior seguro para recolher alguma vitamina D, e ar mais ou menos fresco, e também de jardim imaginário para uma criança correr sentada com os seus brinquedos. Fazem falta mais espaços exteriores para os apartamentos! Quando nos mudarmos para uma casa, o seu desenho terá que ter essa preocupação de proporcionar uma estreita relação com o espaço exterior.

Com a pandemia, chegaram também novas necessidades — e algumas delas espaciais. Para cumprir as recomendações da Direcção Geral da Saúde no que diz respeito aos hábitos de chegada às nossas casas depois de uma saída à rua, sentimos agora que ter um hall de entrada suficientemente grande é um pequeno luxo. Espaço para entrar, ter o calçado de saída separado do calçado de casa, lugar à parte para casacos e pousar acessórios, ter um lugar para higienização imediata das mãos com o gel desinfectante, para ter as máscaras para as saídas...

De repente, pelo tamanho das necessidades, parece que falamos de uma sala de estar. Dadas as circunstâncias, os lugares de convivência das nossas casas parecem ganhar mais importância ainda. Passamos a ter mais actividades para distribuir pelo mesmo espaço e, por isso, há uma ginástica espacial que é imperativo fazer-se. Nós por cá fazemos tudo na sala (que é um habitual open space entre a sala de estar e a sala de jantar), descansar, brincar, trabalhar, dançar e todas as refeições, pois, ainda que a cozinha esteja separada por uma parede, existe uma porta que permite um acesso directo pela sala de jantar, o que é bom. Apesar da pobre organização da distribuição espacial deste apartamento — com muito espaço perdido em corredor (demasiado para um T2) —, é bom ter os quartos o mais afastados possível das zonas comuns, pois, enquanto a criança dorme, os adultos podem ainda aproveitar a sala sem preocupação com o barulho. Já era assim em festas pré-covid com os amigos. E assim continua, agora a dois.

A climatização

É bom chegar a casa num dia de Inverno e ter a sensação física que o aquecimento ficou todo o dia ligado. Mas não, foi apenas o sol. Até porque o único sistema de aquecimento deste apartamento é uma lareira, não um recuperador — que esse até seria mais eficiente —, mas uma simples lareira adornada a tijolo burro. Foi o sol que entrou pelas janelas e depositou a sua temperatura nas paredes e pavimento da casa. Estes absorveram e mantiveram o calor por algum tempo após o sol se despedir. De facto, é cada vez mais usual a escolha das placas de gesso cartonado (aka “pladur") para a construção das paredes interiores da habitação. No entanto, nesta casa, as paredes são feitas apenas com tijolo, de 11 centímetros de espessura (fui medir), que, pela sua inércia, absorvem e mantêm o calor durante mais tempo do que a placa de gesso.

Durante este tempo todo em casa, tive também oportunidade de observar o conforto com que a minha filha brinca e passeia descalça. Mas apenas nos pavimentos de madeira, os outros, cozinha e casas de banho, ela classifica-os como sendo “de lava” — que, traduzido do dialecto criancês, significa que “não deve ser calcado”. Imagino que, ironicamente, devido à sua temperatura mais fria, típica dos cerâmicos. Consigo entender o apelo económico da solução dos cerâmicos que imitam uma espécie de soalho, muito usual ultimamente; contudo, numa casa minha não abdicaria do conforto táctil da madeira.

As nossas casas, especialmente as dos centros urbanos — onde se vive mais depressa — são cada vez mais apenas um lugar de abrigo no seu sentido utilitário. Vamos a casa para dormir. Vamos a casa para comer. Ou vamos a casa porque já não temos mais nenhuma tarefa a fazer lá fora. Com esta desaceleração obrigatória e global, fomos obrigados a aproveitar o tempo com a nossa casa. Limpar, reparar, mudar, aproveitar, reconstruir, apreciar e fruir foram alguns verbos muito usados nestes últimos dias dentro dos nossos lares. Para mim, também esteve muito presente o verbo reconsiderar, no seu sentido prático e estético da casa, mas também no sentido de reflexão sobre como esta permite ou limita o meu modo de vida. Viver numa casa que preencha e sustente a forma como eu escolho viver é o meu novo objectivo. 

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