Covid-19: fases da pandemia ditaram mudanças nas compras dos portugueses
A introdução das compras online é uma das novidades na vida de muitos portugueses.
A propagação da pandemia trouxe consigo novos desafios às famílias portuguesas no que toca à forma como gastam o seu dinheiro e planeiam as compras. O pessimismo dos consumidores aumentou com os efeitos económicos do novo coronavírus e isso vê-se na forma como o consumo de certos produtos tem vindo a oscilar juntamente com a adaptação à realidade do confinamento, revelam vários relatórios que foram saindo por estes dias.
Actualmente, os portugueses parecem estar com menos receio de sair de casa, o que se traduz, também, nas idas às compras, em lojas físicas, onde utilizam a rede multibanco. Na última semana, o uso desta rede subiu para o valor mais alto das últimas cinco semanas, revela o relatório publicado nesta quarta-feira pela SIBS, empresa que gere a rede multibanco.
Contudo, os dados referentes à semana passada contrastam com os publicados na semana em que o país entrou no estado de emergência, altura em que as compras em lojas físicas desceram para metade do habitual antes da pandemia. Mas menos idas às compras não significa poupança: os dados de meados de Março mostram que a média de cada transacção foi de 42,10 euros, mais 6,40 euros do que seria esperado para essa altura do ano. Neste momento, esse valor já desceu para os 38 euros.
Da corrida ao papel higiénico aos produtos de beleza
Em que é que os portugueses gastaram? Segundo os dados da SIBS, cerca de 65% das transacções estão a ser feitas nos sectores de supermercados e hipermercados, pequena distribuição alimentar e farmácias, o que demonstra uma manutenção dos padrões de consumo. Antes da pandemia, esses gastos representavam 39,4% das transacções feitas através do multibanco.
No hipermercado compram mais 9% de produtos categorizados como bens de grande consumo face ao mesmo período no ano passado, nota a Nielsen no seu barómetro, lançado nesta quarta-feira. Já em Março, na semana em que foi anunciado o estado de emergência, registou-se um aumento de 68% na compra de produtos básicos, naquilo que a consultora descreveu como “a etapa de preparação para a quarentena”. Entre os artigos com uma maior subida face ao período pré-pandemia encontravam-se os enlatados (+79%) e o papel higiénico (+75%).
A preocupação com a estética também tem visto flutuações ao longo das diferentes fases do confinamento. Entre o anúncio do estado de emergência, em Março, e a sua renovação no início de Abril, a compra de produtos de depilação subiu cerca de 30% e os produtos de cabelo 20%. Segundo a Nielsen, enquanto numa primeira fase a cesta de compras assumia “moldes de sobrevivência”, mais económica e racional, agora os portugueses em quarentena têm vindo a “tentar assegurar um bem-estar e cuidado consigo próprios, muito provavelmente para tentar experienciar esta nova realidade da melhor forma possível”.
Contudo, as idas ao supermercado estão mais difíceis para muitas famílias que viram os seus rendimentos afectados com lay-off e despedimentos e para as quais o dinheiro não chega para os artigos menos prioritários.
Deco alerta para a utilização do crédito
“Estamos a receber muitos pedidos de informação e ajuda, praticamente todos relacionados com a perda de rendimentos devido à pandemia”, informa Natália Nunes, coordenadora do gabinete de protecção financeira da Deco - Defesa do Consumidor. “Muitas delas já estão a recorrer à rede social para a alimentação”, admite.
A profissional alerta para o uso excessivo de linhas de crédito e admite que, “de uma forma geral, continua a existir uma falta de literacia financeira” entre as famílias portuguesas. “Os pedidos de ajuda que já recebemos no mês de Abril mostram que os consumidores, perante as dificuldades, continuam a recorrer muito aos cartões e linhas de crédito”, constata. Este é um cenário que não é novo para a Deco, que presta este apoio a famílias em dificuldades há cerca de 20 anos, e Natália Nunes alerta que a corrida ao crédito poderá voltar a acontecer “como em 2008 e 2012”.
Fruta e hortícolas são prioritários
Com menos dinheiro para gastar, há decisões que as famílias têm de tomar nos supermercados. “Nesta altura é fundamental que saibamos comer bem e barato”, sublinha Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas, acrescentando que no cabaz de compras “não pode faltar, de maneira nenhuma, os frutos e hortícolas, que são mais baratos do que outros produtos e têm muitos benefícios nutricionais”.
Um dos pratos que a bastonária destaca é a sopa: “É claramente um prato muito importante que, para além das hortícolas e de um tubérculo, como a batata, deve ter leguminosas.” Contudo, sublinha que “isso não quer dizer que possamos retirar da nossa alimentação os produtos de origem animal, até porque eles são bem necessários”. “É a proporção” que se revela importante, salvaguarda.
Quanto ao aumento acentuado da compra de citrinos, Alexandra Bento lembra que não existe evidências científicas que indiquem que algum alimento, per si, seja fundamental nesta altura. “É uma doença contagiosa e, por isso, não são os alimentos que vão impedir o contágio”, aponta. Porém, ressalva que “uma alimentação saudável, claramente aumenta aquilo que é a nossa capacidade de resposta perante uma agressão. Claro que as frutas têm um grande peso nessa questão.”
Ainda com poucos dados quanto às variações nos hábitos alimentares dos portugueses em época de pandemia, a bastonária diz esperar que “o confinamento não ponha de lado a manutenção” das boas práticas.
Aumentam as compras online e as burlas
Confinados às suas casas, os portugueses viram-se para as compras através da Internet. O relatório divulgado pela Nielsen revela que “as vendas nos supermercados online mantiveram crescimentos muito elevados, subindo 110% na semana entre 6 e 12 de Abril e aumentando 128% em novos lares”.
Por outro lado, usa-se cada vez mais a Internet para outro tipo de compras. Os dados da SIBS revelam que, no comércio online, os sectores com maior crescimento face ao período antes da pandemia são o do entretenimento, cultura e subscrições (mais 57%), restauração, entrega de comida e take away (mais 53%), e retalho (mais 44%).
Desde o início da pandemia têm chegado à Deco mais reclamações acerca da aquisição de produtos e serviços pela via digital do que o que seria normal nesta altura do ano. No entanto, António Oliveira, jurista da Deco, alerta que essas reclamações já eram “de um volume considerável” no período anterior ao confinamento. O aumento deve-se não só a um aumento nas práticas de burla — o que admite ser uma realidade neste tempo de quarentena —, mas também “pelo simples facto de estarmos a fazer muito mais compras online”.
Há portugueses que estão a fazer, pela primeira vez, compras virtualmente e não conhecem os “sinais de alerta” para se protegerem. Por exemplo, prestar atenção às críticas feitas por outros consumidores, procurar selos de certificação de entidades independentes ou pesquisar o histórico da loja virtual, enumera António Oliveira.
Por outro lado, mesmo depois de efectuada a compra, os consumidores continuam a ter direitos quanto à devolução e reembolso. “Mesmo sem uma justificação como um defeito”, explica o jurista, “é possível devolver um produto comprado online numa loja ou vendedor profissional num prazo de 14 dias contínuos, a partir do momento que o recebeu”. Este direito não se cinge às compras feitas em lojas nacionais, uma vez que “estas vendas online enquadram-se naquilo que chamamos de contratos celebrados à distância e a lei que vigora em Portugal é resultado de uma directiva comunitária ao nível europeu”.
Para apoiar aqueles que têm problemas nas suas compras pela Internet, é possível recorrer a associações de protecção dos consumidores como a Deco e reportar casos de litígio na versão digital do Livro de Reclamações.