Dia 23: Avós preocupados têm netos preocupados?
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.
Querida Ana,
Estava a arrumar papéis e revistas antigas, e encontrei uma Pais e Filhos, em que escrevi uma crónica sobre a “Preocupação”, que objectivamente podia ter sido escrita ontem. Assumia-me como uma worrier, alguém que tem sempre na mochila uma preocupação, e confessava que apesar de não me levar muito a sério, e conseguir dar a volta à coisa com algum sentido de humor, nunca era capaz de esbater completamente esse estado de alerta. Pior ainda, concluía que devia ser uma característica genética ou de educação, porque filhos e netos pareciam tê-la herdado, e imagina a ironia comparava-a com uma espécie de vírus que contagia os que vivem psicologicamente muito próximos, como era o nosso caso.
Já na altura, sem que a imaginação chegasse para adivinhar esta pandemia, constatava que quem perde sempre somos nós. Porque estarmos pré-ocupados, como o nome indica, significa que o espaço dentro de nós está previamente preenchido, não deixando lugar, ou pelo menos tanto lugar como desejaríamos, para gozar o momento presente. O que é uma pena. Claro que a culpa deve ser da mãe. Não da mãe Ana, nem da mãe-avó Isabel, nem da bisavó Pamela, mas de uma mãe primordial, talvez mais próxima de Eva e do Jardim do Paraíso. Porque, de facto, a culpa das mães é tão “original” que só pode ter vindo com a trincadela do fruto proibido. Ou não.
E, claro, do cortisol, útil para nos ajudar a fugir de um perigo iminente, mas corrosivo quando circula no sangue sem prazo de validade: encolhe-o, fica mais pequenino, incapaz de cumprir com as suas funções, com menos capacidade de criar novas sinapses, o que leva a dificuldades de aprendizagem, a problemas de memória e por aí adiante. Aprendi isto numa Ted Talk, e mais ainda: Os bebés ratinhos de uma mãe cuidadora, que os protege e está presente, têm mais receptores de cortisol, o que significa que, uma vez adultos, vão lidar muito mais facilmente com o stress do que os ratinhos a quem calhou em sorte uma mãe negligente (ela própria, coitadinha, provavelmente filha de uma mãe negligente, mas essa é outra história). Mas o mais extraordinário, e assustador, para dizer a verdade, é que essa “malformação” vai passar aos filhos dos ratinhos mal-amados, e aos filhos deste e por aí adiante, pelo menos durante algumas gerações — não é uma alteração do DNA, mas uma alteração epigenética, ou seja dos genes que se vão expressar.
Toda esta ciência devia ser suficiente para sensibilizar avós preocupadas a procurar estratégias para dissipar a sua preocupação, ensinando pelo exemplo. Porque de outra forma, por muito que não o desejem, vão ter netos preocupados. Ai, meu Deus, mais uma preocupação.
Desculpa, filha, uma herança tão pesada.
Querida Mãe,
Esta quarentena pode ser a oportunidade perfeita para percebermos como provavelmente temos mesmo um Mr. Worry a viver dentro de nós, constantemente a tentar comandar as nossas acções e a encobrir os momentos bons com uma nuvem escura — “É bom, mas vai acabar num instantinho”, “É bom, mas...”. O senhor Worry arranja todos os pretextos para nos convencer que as preocupações têm toda a razão de ser! E vivemos convencidos de que estaríamos em paz, se não fosse a preocupação com o dinheiro, se não fosse aquele trabalho ou os problemas daquele amigo...
A quarentena, é claro, dá-nos imensos pretextos novos. Uma pandemia é um óptimo alimento para o senhor Worry, mas se estivermos atentos, também é uma excelente ocasião para o “apanhar” em acção. De repente, a ansiedade convence-nos de que o que é mesmo preocupante é a roupa não estar separada nas prateleiras por cores, ou o cabelo das crianças não estar penteado. Revela-nos, por exemplo, que afinal a falta de tempo em casa que tanta ansiedade nos provocava, não passava de uma desculpa como outra qualquer, porque continuamos igualmente stressados.
Os especialistas garantem que é possível lutar contra este bully. E dizem-nos que quanto mais o desafiarmos, mais pequeno fica.
Nunca saberemos, por mais ratinhos que se estudem, qual é o peso da genética e o peso da educação nisto tudo, mas o cérebro humano tem muito mais flexibilidade para aprender e para se reformular do que pensamos. Ou seja, se até acredito que a ansiedade se transmite de geração para geração, está provado que a experiência, o trabalho interior e os exemplos, tornam possível dar a volta ao nosso suposto “fado”.
Mas isto só se conseguirá quando se levar mais a sério a saúde mental. A começar logo nas escolas. Os worriers têm um lado fantástico, o da empatia, que deve ser preservado, enquanto se aprende a dar conta do “lado mau”, que limita. Para alguns, a meditação é uma excelente ferramenta, enquanto outros precisam da ajuda de um terapeuta/psicólogo, e ainda haverá aqueles que a par da terapia precisam de medicação, que permite baixar o volume do alarme que não pára de tocar dentro deles, impedindo-os de fazer uso dos seus próprios recursos interiores. E todos precisam de mais informação. Para os pais que querem ajudar filhos ansiosos, o YouTube da Natasha Daniels é um bom ponto de partida!
Beijinhos, tenho de ir porque estou preocupada com a possibilidade de ter deixado o bico do fogão ligado!
No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram