Não quero ser “uma idosa”!
Não quero que me tratem como uma criança, porque ainda que tenha de usar fraldas, ainda que a baba me escorra dos lábios, ainda que tropece nos meus próprios pés, eu não voltarei a ser criança.
Eu não quero ser “uma idosa”, quero envelhecer. Quero ser velha. Exactamente como antes fui criança, adolescente, jovem e como sou, hoje, uma mulher madura.
Quero ser, na minha velhice, uma pessoa diferente de todas as outras, como sempre fui uma pessoa diferente de todas as outras, nas diversas fases da minha vida.
E quero que respeitem essa minha diferença. Que respeitem a previsivelmente progressiva perda de velocidade da minha diferença, ou o mesmo será dizer, que aceitem o meu tempo, que será talvez mais vagaroso, mas que, ainda assim, será tempo e que como tempo deverá ser respeitado.
Que respeitem a previsivelmente progressiva perda de forças ou o cansaço. Que respeitem a pele menos firme, as rugas, o corpo que descai. Serão, todos eles, sinais de uma vida vivida e que por serem vida deverão ser respeitados.
Que respeitem os meus saberes e as memórias que construi, ainda que eu própria já não recorde esses saberes nem essas memorias. Que os respeitem mesmo que eu os não recorde, porque eles são, também, os saberes e as memórias que aprendi, transmiti e construí com os outros.
Que respeitem o meu silêncio ou a minha tagarelice, que respeitem a minha vontade de estar só (e me ajudem a estar segura, quando só), ou a minha vontade de dançar, ainda que trôpega, até ser de manhã.
Que não me digam como me hei-de vestir ou pentear, para estar conforme à idade, nem que me mascarem com um boné amarelo para um passeio de camioneta.
Não quero que me chamem “minha querida”, nem “amorzinho”, nem que me mandem “bater palminhas” “estar quietinha”, ou “ficar sossegadinha”.
Não quero que me digam que voltei a ser criança!
Não quero que me tratem como uma criança, porque ainda que tenha de usar fraldas, ainda que a baba me escorra dos lábios, ainda que tropece nos meus próprios pés, eu não voltarei a ser criança.
E não quero “bater palminhas” à criança macaqueada em que me querem tornar!
Quero que me olhem como pessoa inteira e não como um “resto” de gente, relativamente a quem a sociedade, jovem e ocupada, se entretém na afanosa esterilidade dos conceitos teóricos ou das estratégias de intervenção pioneiras.
Os conceitos e as teorias que me dizem como eu devo ser “uma idosa” e as estratégias para a sociedade lidar com a “idosa” que eu serei.
Quero que me deixem estar em casa, enquanto eu puder e me apetecer estar em casa. E quero ter um Lar (e dêem-lhe o nome que quiserem: estrutura residencial, unidade residencial, residência assistida...) que seja digno, onde me cuidem e protejam, quando eu já não puder, ou não quiser estar em casa.
Quero que me reconheçam algum valor, e não apenas o meu valor passado (daquela que fui, em jovem) mas o meu valor presente (daquela que serei, já velha) porque mesmo que as palavras e os tempos se me baralhem, eu continuarei a ter um presente.
Ou melhor, eu continuarei a existir num presente. E, por existir, terei valor. E o meu presente terá valor.
O valor de ser uma pessoa velha. Velha por ter vivido, por ter aprendido, por ter ensinado, por ter amado, por ter sofrido.
E por poder continuar a viver, a aprender, a ensinar, a amar e a sofrer.
E tudo isto sendo velha. Desassombradamente velha, descomplexadamente velha, despreconceituosamente velha, normalmente velha e, sobretudo, distintamente velha. Velha sim, não “uma idosa”!
Porque eu não quero fazer parte dessa categoria pia e amaciada que pretende suavizar, no temor das palavras, e pretende igualizar, no temor da diferença, e que ao igualizar, desrespeita, naquele que é o mais socialmente legitimado, validado e sufragado dos preconceitos e dos “ismos": o idadismo.
Por isso, e porque envelhecemos e não “idosamos”, por favor, lá adiante, daqui a muito pouco (porque o tempo é tão veloz), deixem-me ser velha e, sobretudo, deixem-me ser eu.