Deixem aquele miúdo apanhar alguma seca

Sem essas secas de aulas, não teria certamente sonhado tanto acordada.

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Nelson Garrido

À minha frente no comboio, ela contava a uma amiga como era boa a escola onde o filho andava. Tudo acontecia sempre a horas, os professores davam aulas cativantes, os miúdos estavam atentos, as actividades extracurriculares eram extraordinárias, eram isto e aquilo e tudo e mais alguma coisa e outra coisa qualquer. O filho adorava e os pais também.

É certo que só apanhei fragmentos da conversa e nada disto seria um pouco inquietante para mim, se não fosse ter-me parecido que o tom geral daquela conversa era não tanto a dedicação dos professores ou a curiosidade dos alunos, mas a proeza de tudo o que acontecia naquela escola ser como um carrossel ou um parque de diversões, com algo sempre a chamar a nossa atenção, a divertir-nos, a desarrumar-nos ou arrumar-nos, enfim, com algo sempre a dar-nos uma direcção, um caminho, um guião.

Eu não quero fazer a apologia da escola chata, longe disso. Não me revejo naquelas teorias de que para aprender isto e aquilo é preciso sofrer, decorar, treinar, um esforço digno de super-herói e que todas as horas aborrecidas e sofridas vão ser compensadas por um 20 na pauta. Não olho para a escola assim. Mas também não olho para ela como um carrossel em que estamos sempre divertidos.

Tive muitos momentos de tédio na escola. Aulas a que os professores faltavam, por exemplo – não, também não sou apologista do absentismo, mas nesses furos (ou feriados, como dizíamos na altura), às vezes, ficávamos sem nada para fazer. Se conseguíssemos, e já em plena adolescência, íamos ao café. Se não, e antes dessa idade, ficávamos para ali às voltas no recreio, encostados a um canto qualquer se estivesse a chover, a ir daqui para ali, do bar para a sala de estudo, onde, de resto, ninguém estudava.

Tive outros momentos de tédios. Sessões, conferências a que os professores nos levavam. De algumas não me lembro de nada, a não ser da risota que era durante e no fim, precisamente por causa da seca que apanhávamos. Era curioso, mas a seca acabava por divertir-nos. Os paradoxos encantam-nos. Uma vez, um colega meu ia morrendo de falta de ar, de tanto de se rir, porque nos foi ver (a mim e às minhas colegas, éramos só raparigas) a dizer poemas de Florbela Espanca num sarau promovido pela escola.

As secas de aulas que tínhamos às vezes. Mas era maravilhoso, porque eu fartava-me de pensar e de viajar nessas horas. É certo que não ouvia uma palavra do que estava a ser dito, mas sonhava com o futuro. Com uma festa que ia haver, com o fim-de-semana, com a paixão que tivesse na altura, escrevia poesia nas margens do caderno. Sem essas secas de aulas, não teria certamente sonhado tanto acordada.

Depois, às vezes dávamos seca uns aos outros. Sem telemóveis para avisar que, afinal, íamos chegar atrasados ou que não podíamos aparecer, acontecia, por vezes, como escreveu Eugénio de Andrade num poema (que não tem que ver com este tema, mas do qual me vou indevidamente apropriar), “gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis”.

Às vezes, ficávamos para ali sozinhos, a gastar tempo, a andar para trás e para a frente, a chutar pequenas pedrinhas ou a atirá-las para algum descampado, para longe. A pensar na vida, no quão desapontados estávamos, se tivesse sido alguém merecedor do nosso enamoramento a não aparecer, a pensar no quão aborrecidos, furiosos, ou simplesmente resignados com o que quer que tivesse acontecido.

Tenho boas memórias de algumas secas em criança e na adolescência. De me ter perdido em sensações desconhecidas nesses momentos, de ter viajado muito pelo meu futuro, de ter entrado numa sala de aula determinada a tirar apontamentos e ter saído com o poema de amor mais sentido que já havia escrito. As secas podem parecer desertos, sítios inóspitos onde ninguém quer ir ou onde não queremos levar ninguém, mas também chove por lá e o espaço é normalmente a perder de vista.

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