O Verão será eterno

O Luís estava longe, chamei as minhas primas e a minha mãe e deixei-me chorar. Foi a primeira vez que chorei por um cão. Não sabia que se podia chorar por um cão.

Foto
Nelson Garrido

Há dois dias que nunca vou esquecer. Quer dizer, há muitos outros, claro, mas o que interessa para o que aqui se vai contar é que há dois dias que nunca vou esquecer: quando vi o Verão pela primeira vez e quando o vi pela última vez. A primeira era Setembro, um calor dos diabos em Lisboa, eu pouco à vontade com cães e ele a receber-me à porta como sempre fazia: aos saltos, a cauda a abanar, as patas nas minhas pernas nada habituadas a estes mimos. O Verão tinha sete anos e era um cão feliz que vivia na cidade. A última vez que o vi era Julho, 19, 2018. Era um cão velho e doente e olhou-me nos olhos como nunca o tinha feito. Naquele momento suspeitei que talvez fosse o nosso último olhar, um olhar cúmplice, de gratidão mútua, mas não tive a certeza. Pouco depois, encontrei-o morto. O Verão tinha 16 anos e acabara de morrer, já não na cidade grande, numa cidade pequena, da província, acho que é assim que se diz.

Não vou esquecer aquela tarde. Estava ao telefone com o Luís e desatei a chorar, a pedir-lhe que me ajudasse. Ele estava em Lisboa, eu em Santa Maria da Feira, a nossa morada em comum alguns dias da semana, a morada permanente do Verão desde 2013. Eu estava a ver o Verão pela janela da sala, deitado no terraço, de olhos abertos, e não precisei de ir lá para saber que estava morto. Aliás, eu não consegui ir lá. A única coisa que fiz foi abrir a porta do terraço para deixar entrar a Indie, a cadela de sete anos que também temos connosco. Eu só conseguia chorar. O Luís estava longe, chamei as minhas primas e a minha mãe e deixei-me chorar. Foi a primeira vez que chorei por um cão. Não sabia que se podia chorar por um cão.

Continuava a chorar quando chegou a funcionária da clínica veterinária que chamei para levar o Verão. E foi a chorar que a ouvi pô-lo numa caixa e levá-lo para sempre. O Verão estava a deixar a nossa casa para sempre. Tecnicamente, aquele era um dia de Verão, que por acaso é a minha estação favorita, mas o Verão escolheu partir num dia que não era de Verão: estava um vento agreste, próprio dos dias de fim de Inverno a cheirar a Primavera. Acho que ele fez de propósito, partir num dia de Verão que o era apenas pelo calendário, para não me obrigar a escolher outra estação do ano preferida. 

Foto
Nelson Garrido

Ele foi-se embora naquele dia, mas para nós o Verão será eterno. Quando consegui secar as lágrimas, entrei no carro com a Maria João e fui a uma loja imprimir a minha fotografia favorita com ele. Foi o meu amigo Nelson Garrido que a fez, em Setembro de 2017. O Verão já estava doente, era um cão de 15 anos com doença cardíaca, e eu quis tê-lo para sempre em imagens bonitas enquanto ainda estava em razoável forma. As fotografias do Nelson, do Verão e também da Indie, ficaram lindas, mas há uma de que gosto especialmente: estou a abraçá-lo, macacos me mordam se alguma vez pensei fazer isto a um cão – e alguns de vocês sabem que estou a dizer a verdade.

O Luís chegou nessa noite. Fui buscá-lo ao autocarro. Levei a Indie e um embrulho bonito com a fotografia numa moldura. Quando ele chegou, abraçámo-nos, mas só chorámos juntos em casa, no exacto sítio onde eu encontrara o Verão morto. Já passou quase um ano, mas continuo a saber exactamente em que lajes do terraço o coração dele se cansou de vez.

Já fiz lutos vários na minha vida, o mais doloroso pelo meu pai. Pelos meus avós, pelos meus tios. Agora faço o luto pelo Verão. E o meu luto pelo Verão faz-se sobretudo através da Indie.

A minha vida mudou com o Verão – eu mudei com o Verão, o cão rafeiro que tinha o melhor nome de sempre. E se ao longo dos cinco anos em que vivemos juntos a minha afeição foi aumentando gradualmente, só percebi realmente o quanto gostava dele nos seus últimos meses de vida (claro). Agora que penso nisso, entendo que amei o Verão como naquele tempo sabia amar um cão. E percebi, no dia em que ele morreu, que nada iria ser como dantes.

Hoje sei amar a Indie de outra forma. Enquanto escrevo estas linhas, já voltei a chorar pelo Verão, mas o mais importante é que as escrevo com a Indie deitada praticamente aos meus pés. Chove lá fora e estamos aqui as duas, a aquecer-nos uma à outra. Acho que ambas sabemos que o Verão é o responsável por isto.

Quem nos últimos cinco anos me ouviu dizer as maiores barbaridades sobre a minha condição de quase “mãe solteira” de dois cães, pode agora fazer um sorrisinho cínico à vontade, eu sei que mereço: um cão muda-nos de facto a vida. Eu estou cá para comprovar o cliché.

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