Os “rural-galvanizados” que comem tudo menos alface
Para Miguel Sousa Tavares, os “urbano-depressivos” representam, generalizadamente, quem segue uma alimentação vegan, é alienado da natureza porque não caça nem come animais e vota no PAN ou noutro partido ecologista. Não há vegetarianos que votem no PS. E todos os que votam no PSD vivem no campo.
Já em 1911, em Portugal, Amílcar de Sousa, médico e autor português, falava, de forma pioneira, dos benefícios de uma alimentação vegetariana. Provinha de uma família de viticultores de Alijó, em Sanfins do Douro, onde ainda hoje não encontramos quaisquer torres de betão ou grandes vias alcatroadas, típicas do centro urbano.
E também Donald Watson, o fundador da Vegan Society, em 1944, e responsável por cunhar o termo “veganismo”, para designar o estilo de vida que promovia, viveu uma grande parte da sua vida no campo, na região do Lake District, em Inglaterra, onde se dedicava, entre outras coisas, à agricultura biológica. Aí viveu e acabou por falecer, já com 95 anos, em 2005. Nada mal, para um mero comedor de alfaces.
Estes dois grandes pioneiros do estilo de vida vegetariano têm algo em comum: ambos cresceram ou viveram uma boa parte das suas vidas no campo. Como muitos ainda o fazem hoje.
No entanto, e apesar disso, alguns mitos persistem no pensamento colectivo da população portuguesa, fomentados por discursos mediáticos inflamados de ódio e ressentimento. Conforme ilustra Miguel Sousa Tavares, em comentários recentes.
Para o comentador da TVI, todos os eleitores que votam no partido PAN são “urbano-depressivos e comedores de alface”. Para ele, também, todos os vegetarianos ou veganos são residentes urbanos, acometidos de depressão e consumidores vorazes de alfaces. Como se não bastasse, são todos ignorantes do estado da natureza, e esse conhecimento, para Miguel Sousa Tavares, só pode ser adquirido sendo-se um praticante da caça em convívio com amigos. Qual piquenique ou retiro na natureza, é preciso levar a caçadeira em riste.
De acordo com o autor, os “urbano-depressivos” representam, generalizadamente, a demografia dos residentes urbanos que seguem uma alimentação vegan, são alienados da natureza porque não caçam nem comem animais e votam todos no PAN ou noutro partido ecologista. Não há vegetarianos que votem no PS. E todos os que votam no PSD vivem no campo.
Se a construção mitológica do vegetariano que só come alface já começa a ser encarada como o remoque pouco criativo do bobo da mesa de jantar, que persiste no arquétipo bolorento e recolhe poucos aplausos ou elogios, surpreende que alguém diagnostique todos os vegetarianos com depressão. Nem que fosse porque aquelas senhoras que aparecem nos anúncios a comer saladas estão sempre com um sorriso exuberante estampado nos rostos, como se a salada estivesse temperada com anfetaminas. E ainda mais surpreendente é que alguém considere que é necessário comer carne para se debelar a depressão e nos mantermos sãos.
Seguindo a lógica do modelo, todos os residentes no campo seriam “rural-galvanizados” que nunca tocam em verduras e conhecem bem a natureza porque caçam e vão à matança do porco. Nunca sofrem de depressão e votam todos no CDS. Generalização?
Resta aqui perceber se a Psiquiatria corrobora estes argumentos e a próxima edição do DSM-5 vai incluir alguma categoria que abarque os urbano-depressivos, isto é, aqueles residentes da cidade que só comem alface, não percebem nada da natureza e vão à cabine de voto fazer a cruz no PAN, com um gato na cabeça e dois agarrados às pernas.