Sim, somos vítimas!
Tudo serve para descredibilizar e desqualificar a vítima, sobretudo se ela não encaixa na imagem da mulher como um recetor passivo da violência, refém das suas próprias perceções.
Quando uma mulher assume a condição de que é vítima de violência ou de qualquer tipo de opressão já fez um longo caminho no plano do sofrimento físico, psicológico, emocional e moral. Para além de já ter passado por um autoquestionamento – Se calhar estou a exagerar! No fundo ele gosta de mim! –, ela é alvo de uma descredibilização constante pelos agressores que minimizam a intensidade e os efeitos da violência. Este processo prossegue, muitas vezes, entre os familiares, amigos e nas próprias instituições que devem ser o baluarte da defesa dos seus direitos fundamentais, como é o caso das forças de segurança pública, da justiça e da saúde. As mulheres são assim convencidas de que “merecem”, “provocam”, “de que não é assim tão mau”, que se “puseram a jeito”, “desafiaram a autoridade masculina”, acabando por duvidar, muitas vezes, do seu entendimento sobre os acontecimentos e se o que estão a viver é de facto violência, ao mesmo tempo que levam com o rótulo de que são psiquicamente desequilibradas, para não dizer “loucas”.
De facto, tudo serve para descredibilizar e desqualificar a vítima, sobretudo se ela não encaixa na imagem da mulher como um recetor passivo da violência, refém das suas próprias perceções. Esta imagem encontra-se muito presente na justiça a justificar, inclusive, alguns acórdãos no âmbito da violência doméstica, mas também é frequente em contexto laboral, em casos de assédio moral. São frequentes os comentários “estás a armar-te em vítima”, “tens a mania que és vítima”, como narrativa de quem quer descredibilizar as denúncias e a ação de mulheres que têm experiências reais de exclusão, discriminação e assédio no local de trabalho. Estas conceções são demasiado perigosas e simplistas pois não se pode pensar que se se é agente, de algum modo, não se é completamente vítima. A mudança ao nível das nossas representações acerca das vítimas obriga-nos a desmantelar este binário (vítima passiva/vítima agente), assim como as estruturas fixas de pensamento acerca do estatuto de vítima. Obriga-nos ainda a combater a cultura do medo patriarcalmente sustentada em que somos, desde cedo, socializadas e que fomenta a (auto) perceção da vulnerabilidade feminina, fazendo com que as mulheres sintam que não conseguem combater as investidas masculinas, e transformando-as em pessoas que vivem permanentemente assustadas.
As vítimas são atores sociais com direito próprio, o que significa que ser vítima é recusar uma condição existencial opressora, que causa dano e sofrimento permanente. Significa recusar as representações extremas e patológicas da vitimização; enfrentar o medo do desconhecido e participar ativamente, com os profissionais que estão na linha da frente da emergência social, no seu processo de empoderamento; significa ter acesso aos recursos do Estado de Direito na promoção e defesa dos seus direitos fundamentais, em suma, significa ser agente de mudança em prol de uma vida sem violência, o que implica igualmente a recusa dos estereótipos que promovem a sua descredibilização e desqualificação social. Por isso, sim, somos vítimas!
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico