Telmo Roque: “Uma faca de chef tem que estar absolutamente imaculada e nada menos do que perfeita”

Telmo fala de "madeira absolutamente lindíssima". Salva-a, estima-a e usa-a numa conjugação perfeita com lâminas afiadas, dignas da mitologia. Fomos ao sítio onde pensa as suas facas (Fab Lab Aldeias do Xisto). Visitámos a gruta onde as forja (Aldeia Nova do Cabo).

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Teresa Pacheco Miranda
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Telmo vive em Aldeia Nova do Cabo — e faz facas. “Lá em casa sempre houve canivetes a dar com um pau. Nem todos bons”, recorda à Fugas, que visitou a “gruta” onde forja as suas criações rodeada por árvores vivas e por madeira que respigou aquém e além, pedaços de marmeleiro, de pereira e de medronheiro, uma torga (a raiz de urze da qual se faz carvão), um cepo de oliveira, madeira “estalada pelo calor dos incêndios, com estrias”, “madeira absolutamente lindíssima” que aprendeu a mimar e a transformar.

“O meu pai acha que as ferramentas se guardam dentro das árvores”. Às vezes, enquanto passeia pelo terreno, Telmo ainda encontra ferramentas escondidas no tronco das árvores. Guardadas pelo pai, que era construtor civil e tocava acordeão. “Lembro-me quando era puto foi uma loucura quando vi a primeira faca do mato. Quando vejo uma faca do mato lembro-me dos acampamentos e das clareiras que abríamos no mato para acampar. Ficávamos três dias à beira rio.” As lâminas accionam memórias. Fazem parte desta história — e da de muitos rapazes que cresceram no interior. “Os nossos carros de rolamentos eram troncos de pinheiros cortados. O mais velho (com dez anos), que era o que conseguia pôr a motosserra a trabalhar, fazia-lhe um buraco. Nunca me aleijei nem nada. Estamos geneticamente programados para gostar de facas. Foram provavelmente os primeiros utensílios usados pelo homem.”

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Dentro de casa guarda madeira “absolutamente lindíssima”. As divisões estão recheadas de tábuas e tabuinhas, de testes, desenhos e experiências, de facas finalizadas e de facas que ficam bem assim, espetadas pela ponta afiada, no estado bruto, de coldres de burel pousados ao lado da colecção de palhetas. Toca guitarra desde os 15 anos. “Chamavam-me Metal”, sorri junto aos gatos Martelo e Faquir. “Não consigo pensar só numa coisa”, diz Telmo Roque. Vive numa aldeia porque sente “necessidade de fazer parte do espaço”. Por baixo da casa escavou uma caverna à sua medida. Avental de pele, óculos e máscara de protecção, máquinas e ferramentas — algumas boas e outras rombas, enferrujadas, encontradas aquém e além dentro das árvores.

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Telmo usa metal reciclado nas suas criações. Teresa Pacheco Miranda

Na Aldeia Nova do Cabo, Telmo faz. A três quilómetros, no Fab Lab Aldeias do Xisto, Telmo pensa e planeia. Ao milímetro. “Controlo tudo desde o sector primário. Apanho a madeira, corto numa serração, levo ao CNC [Computer Numerical Control]”, explica no seu “laboratório” da incubadora do Fundão.

Foi para Inglaterra por causa da crise. Voltou por causa do Brexit. “Não sou de ficar à espera que o martelo caia e por isso comecei a fazer contas à vida”, justifica Telmo, natural de Bogas de Cima. Acabou a licenciatura em Design Industrial na Universidade da Beira interior, agarrou nas poupanças e montou o seu negócio. Fez um workshop com Paulo Tuna ("já me tinha esquecido que gostava tanto de facas. Vim de lá todo tolo!") e desenvolveu a faca Alcaide para o Festival Míscaros, madeira de oliveira de Alcaide, cerdas de javali (as cristas do lombo cedidas por caçadores; “um javali deu-me para mais de um ano") e lâminas de metal reciclado de carpintarias locais ("um discos destes novo custa à volta de 90 euros. Fazem no máximo uma segunda afiação. E depois nem os sucateiros querem isto. Basicamente é lixo. Os americanos chamam a isto mystery steel, a escuridão completa. Mas como é uma faca de cogumelos, vai andar na terra, o que interessa é que seja flexível e que tenha uma retenção do gume mais perto do machado do que de uma faca").

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O seu “mundo perfeito” é fazer o casamento das tradições com a tecnologia. Começou depois dos incêndios na região. Salvou a madeira. “Andava toda a gente atrapalhada ‘o que é que eu tenho limpar?’. Há por aí produção de azeitona com fartura. Como tenho equipamento de manutenção florestal e agrícola vou lá e meto aquilo num brinquinho. Troco trabalho por madeira. Ficamos todos a ganhar”, explica Telmo, com uma “política” sustentável. Não usa madeira de árvores abatidas sem razão. No limite, a madeira das podas chega. E troca tudo por facas. Adora esse negócio. “Já troquei várias coisas por facas, tudo o que preciso. É uma moeda de troca brutal. E o retorno social que isto tem. Os velhotes passam por mim e todos me cumprimentam. É a terra deles. Esta noção da nossa terra nem toda a gente percebe. Infelizmente nem toda a gente a tem”, sublinha Telmo, que gosta da sua mata limpa — apesar de não ter cabras sapadoras. “Não posso perder dinheiro a limpar a mata. Se encontrar lá valor, passa a ser sustentável. Sustentabilidade a sério e não de marketing. É mesmo ter as rodinhas na cabeça a funcionar. Porque antigamente conseguiam-no e nós parece que esquecemos como se faz.”

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As facas e as palhetas Teresa Pacheco Miranda

Telmo anda “mais em forma do que nunca”. “Farto-me de trabalhar. Só o martelo para forjar pesa dois quilos”, diz. “Na cidade, agarramo-nos ao relógio e esquecemos a natureza. Agora os dias ficaram maiores e eu começo logo a trabalhar mais. Vivo com aquilo que anda à nossa volta.”

No seu “laboratório” branco repousam facas, moldes e caixas delicadas, veios da madeira gravados a laser. “Aqui vai ser um Ferrari”, aponta. “Corta-se madeira, corta-se um cabelo”, sugere Telmo, com encomendas à medida para vários destinos (EUA, Inglaterra, França, República Checa, Lituânia e Eslováquia) e com chefs portugueses à espera de luz verde. “Uma faca de chef tem que estar absolutamente imaculada e nada menos do que perfeita. Eles vão andar 12 ou 14 horas agarrados a ela. Como nas guitarras, a partir de um certo nível têm que estar imaculadas.”

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