O príncipe da Picaria tem 50 anos de Ernesto
Reinaldo Pereira e o seu restaurante são o testemunho vivo da outra história da Rua da Picaria, no Porto, e do rasto que artistas e gerações de estudantes por ali deixaram. Não tem saudades desses tempos, desfruta da animação e do movimento de turistas, mas gostava de voltar a cumprimentar vizinhos que vivam todo o ano na rua.
Reinaldo Pereira é uma espécie de príncipe da Picaria. A referência e memória da rua que foi dos móveis e oficinas de carpintaria, mas que num ápice viu tudo ficar de pernas para o ar. Agora fervilha de animação e todos os dias abrem novos bares e restaurantes nos mais modernos estilos e conceitos, como acontece um pouco por toda a vizinha Baixa do Porto.
E, tal como o seu restaurante, O Ernesto, que em dois tempos passou de ser a mesa burguesa e de vanguarda a referente de tradição, também ele não se deixa contaminar e continua a acolher a clientela no estilo de sempre.
“Tudo isto é ainda muito novo, muito recente, e é preciso esperar para ver. É uma espécie de diamante que é preciso polir para poder brilhar, deixar passar esta fase de altos e baixos que é ainda um pouco arruaceira, passe a expressão. Mas a cidade merece e precisa da mudança que está a acontecer”, nota Reinaldo, que viu um grupo de amigos e clientes fazerem-lhe agora uma espécie de homenagem, quando O Ernesto completa 80 anos de existência e 50 na gerência da família.
Uma festa que incluiu até o lançamento de um livro. Lugar de Arte do Bem Comer com Identidade e Intimidade – Cinquenta Anos do Restaurante Ernesto, assim reza o título que leva textos de Agostinho Santos, jornalista e artista, que junta documentos da história da casa e uma lista de frequentadores onde avultam os nomes do mundo das artes.
E essa é, precisamente, uma das características mais distintivas deste restaurante, em cuja ementa Reinaldo Pereira sempre fez questão de incluir a arte, com quadros e objectos artísticos a decorar em permanência as salas do estabelecimento.
“Isto começa com o [artista] Henrique do Vale, que é morador na rua e também dava aulas na escola aqui ao lado, mas também eu sempre gostei da arte e arquitectura. Uma coisa que acho que vem do meu avô, que já tinha esse gosto. Continuo a dizer que a arte e arquitectura é o que nos dá verdadeiro prazer”, discorre, enquanto explica que essa é uma vertente da casa que vai também de par com a clientela que ao longo destes 50 anos foi entrando portas adentro.
“No início dos anos 1970 passava por aqui grande parte da comunidade de estudantes. Estudavam nos cafés, como o Estrela, o Aviz ou o Ceuta — e ainda lá estão as lápides — e depois vinham comer às tascas. Aqui, à Figueiroa e ao Zé de Braga. Muita dessa gente depois encarreirou nas suas profissões e o restaurante foi-se também adaptando à sua evolução social. Muitos entravam depois aqui e diziam: ‘isto agora está muito caro’, a brincar com os tempos da tasca.”
É da memória dessas gerações que o livro agora assinala nomes como os escritores Mário Cláudio e Manuel António Pina, ou artistas plásticos como Zulmiro de Carvalho, Cruzeiro Seixa, Francisco Laranjo, Julião Sarmento, Graça Morais, José Rodrigues, Sobral Centeno e muitos outros. Mas também figuras da vida pública, como Miguel Veiga ou António Macedo.
É do pai que vem o nome actual do restaurante: Ernesto Pereira, que em 1968 comprou a Casa de Pasto fundada em 1930 por Ana Ferreira dos Santos, conforme atesta o alvará nº 2070 emitido em 11 de Março pelo serviço de Indústrias Insalubres, Incómodas, Perigosas ou Tóxicas da Câmara do Porto. E é com evidente nostalgia que Reinaldo Pereira fala dos tempos iniciais, mas sem saudade do piso térreo, dos pipos de vinho de 500 litros e da pobreza dos trabalhadores das oficinas vizinhas.
“Vínhamos do Brasil, para onde o meu pai tinha emigrado, mas eu era ainda criança. Lembro-me que fugimos de lá por causa da insegurança e das convulsões políticas da época [que levaram à ditadura] e o meu pai ouvia a rádio de Portugal a dizer que a vida aqui era uma maravilha. Veio atraído pela propaganda do Salazar e só quando cá chegou é que viu a miséria que isto era.”
A família, que era oriunda da zona de Castro Daire, instalou-se em Vila Nova de Gaia, já com uma tasca, mas nos primeiros tempos chegou a colocar a hipótese de regresso ao Brasil. “O que valeu foi que o meu pai acabou por ir trabalhar para a Alemanha e foi com o dinheiro que lá ganhou que comprou a casa aqui na Rua da Picaria”, descreve Reinaldo.
A mãe cozinhava, Reinaldo e os irmãos apoiavam o pai no serviço, mas foi sempre ele que mostrou mais jeito e gosto pela função. Na hora de mudança de geração já ele assumia o ofício a tempo inteiro, e até pelas relações entretanto criadas com a clientela, foi natural a evolução.
O convívio com a arte, os novos artistas e os quadros nas paredes marcam a identidade do restaurante, mas Reinaldo Pereira orgulha-se também de ter muitos dos mesmos fornecedores de há 45 anos. Não tem saudades dos tempos antigos, desfruta da animação envolvente e dos muitos turistas que agora lhe entram pela porta dentro — “adoram os quadros, ficam muito admirados e tiram fotografias” —, mas deixa um desejo: “O que mais gostava era que a rua voltasse a ter moradores fixos. De ter vizinhos, gente que pudéssemos cumprimentar todos os dias.”