Peter Bogdanovich: os filmes e o inferno também

De Jean-Baptiste Thoret, Le cinéma comme élégie — conversations avec Peter Bogdanovich. De Peter Bogdanovich os filmes e aquilo que nos ensinam. Mas do inferno não nos salvam.

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THE LIFE PICTURE COLLECTION/GETTY IMAGES

Começando pelo primeiro filme de Peter Bogdanovich, por aquele momento de Targets (1968) em que uma velha estrela de filmes de terror (Boris Karloff) paralisa com uma estalada o sniper que num drive in pratica tiro ao alvo sobre os espectadores: redu-lo à posição fetal, transforma-o, pela intervenção do cinema, na criança que já fora. A partir daqui Jean-Baptiste Thoret, crítico, historiador, defende a sua dama: Bogdanovich e o seu amor pela velha Hollywood,  realizadores que nos anos 60 já estavam no fim da carreira e da vida; Bogdanovich e o seu desinteresse pelos  contemporâneos, a Nova Hollywood.

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O cinema do autor de A Última Sessão (1971) não é afectação passadista ou ersatz do cinema clássico — John Wayne até considerava The Last Picture Show um dirty movie. É antes, defende Thoret em Le cinéma comme élégie — conversations avec Peter Bogdanovich, fixação das conversas mantidas entre ambos ao longo de uma década, um lugar de formação. Não interessa tanto o que o cinema tem a dizer sobre o mundo (como interessava à Nova Hollywood, a quem Thoret dedicou aliás um fulgurante ensaio, Cinéma Américan des Années 70, sobre o momento em que a energia que se convertera em acção no território do cinema clássico dera lugar a uma energia já sem acção e já sem território a não ser a claustrofobia do indivíduo, que por isso só podia explodir); interessa a Bogdanovich o que o mundo aprendeu com o cinema, o tempo forjado pelos filmes. Uma inocência em vias de desaparecimento mesmo que reactivada a cada diálogo com o ecrã. Enfim, a cinefilia como existencialismo, grande melancolia...

São conversas que vão desenterrando motivos e histórias, como aquela da visita de Ryan O’Neal a Cary Grant, a inspiração da sua personagem em What’s up Doc (1972), e o conselho de Cary a Ryan sobre como ser Grant: roupa interior de seda. Ou o paradoxo biográfico de Bogdanovich, americano de ascendência servo-croata, que se é capaz de olhar para a América com distância, manifesta-se contra a “nefasta” influência das vagas europeias nos seus pares.

Mesmo gostando da teoria dos autores formulada pelos europeus, vê incompatibilidades entre a América e a Europa (Daisy Miller...), entre o art movie (e ele é um anti-Antonioni convicto...) e a limpidez do cinema popular. Limpidez... foco aqui sobre os olhares e corrupios em que Bogdanovich suspende o sublime They All Laughed (1981) e o encantado Mask (1985), filme a que é preciso regressar no director’s cut, isto é, com a integração das cenas cortadas, com as canções de Springsteen e com a calibração de cor original e não a versão disneyficada do estúdio. Filmes sobre o ballet que só acontece nos filmes, ficaram ligados à catástrofe: um foi o filme do seu amor por Dorothy Stratten, playmate do ano para a Playboy por quem se apaixonara, o outro o filme dedicado a Dorothy Stratten, violada e morta pelo marido, Paul Snider. O crime horrendo, para que filme algum prepara, destruiria a vida e a carreira de Bogdanovich.

Anos depois,  escreveria The Killing of a Unicorn — Dorothy Stratten 1960-1980, livro com que se pode lidar de várias maneiras: expiação de  culpa, exorcismo íntimo na fronteira do impudor, documento sobre os códigos e impasses da era da “libertação sexual” (a Mansão Playboy de Hugh Hefner é o cenário), herança que estamos hoje condenados a reavaliar... nesse sentido The Killing of a Unicorn assusta pela forma como parecia estar já investido dessa consciência e pela reverberação de uma coisa infernal: as relações, os homens, as mulheres...

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