Duas noites à vossa espera, na recepção do hotel
Descobrir o mundo a três é uma alegria e uma dor só. É uma alegria ouvi-la balbuciar o teu nome e uma dor que isso aconteça numa qualquer noite em que não dorme.
Olá aos dois,
Aqui estou eu no comboio. Foi estranho chegar a Santa Apolónia sozinha. Parece que não sei o que fazer com tantas mãos livres, que não sei o que fazer comigo sozinha numa estação de comboios no Inverno. Sento-me ali à espera, cheia de tempo e de sossego, não sou eu, estou desencaixada noutra vida.
Antes de sair, espreitei a janela de casa. Vista da rua, tinha aquela cor amarelada das histórias para crianças. Aquela luz amarela que pode vir de uma lareira ou de um candeeiro, mas que dá sempre um quentinho à noite das histórias. Foi assim que ela ficou, contigo e com os avós. E eu, inicialmente toda contente porque ia ter duas noites só para mim, fui afinal cabisbaixa até à estação. Santa Apolónia continua bonita, mas desencontrei-me dela logo na partida.
Ligaste-me quando cheguei ao hotel. Não foi uma boa ideia, porque ela primeiro ficou eufórica e, depois, desatou num berreiro. Engraçado isto de ela me reconhecer num ecrã de telemóvel. O senhor da recepção riu-se muito com a videochamada a que assistiu. Olha a mamã, como está a bebé mais linda do mundo, tenho tantas saudades, essas coisas. Acho que ficou a simpatizar comigo por causa do telefonema. No fim perguntou-me quantos anos ela tinha e confortou-me: “Custa muito.”
Eu também simpatizei logo com ele. Já era tarde, mas ainda trocámos dois dedos de conversa. Ele abriu um mapa e explicou-me a confusão das ruelas à volta. Uma recepção de um pequeno hotel à noite tem sempre algo de misterioso e solitário. As pessoas vão chegando. Um pede um isqueiro, outro quer saber onde são os bares, o que há para ver na cidade, outro não diz uma palavra, alguém sobe para o quarto, para o restaurante. Quem são? Ao pequeno-almoço vemo-nos uns aos outros. Quem somos?
Era simpático o recepcionista. Gostava de lhe ter perguntado se fixa as caras que atende, se tem curiosidade por aquelas vidas, que lhe passam tão depressa pelo balcão, mas não perguntei. Fui até ao bar. Estava a dar futebol e eu, que procurava outro ambiente para a minha melancolia por estar longe de vocês, fui-me embora a correr para o quarto. Nada mais distante do meu estado de espírito e das alcatifas cheias de pó e nostalgias do hotel do que aquele barulho de estádio.
Não preguei olho. Nas ruas não passa ninguém, sem vocês. No dia seguinte, vi o mar. Não o vi do hotel, embora a sala do pequeno-almoço tivesse uma bela vista sobre a manhã. Mais tarde, no fim de um longo dia de trabalho, ouvi-te na rádio, falavas dos Goon Sax e de como as músicas deles contavam as alegrias e as dores das descobertas do mundo.
Falam sobre nós, então. Descobrir o mundo a três é uma alegria e uma dor só. É uma alegria ouvi-la balbuciar o teu nome e uma dor que isso aconteça numa qualquer noite em que não dorme. É uma alegria quando ela adormece com a cabeça encostada ao teu ombro, mas uma dor se chorou antes. É uma alegria vê-la dançar, uma dor ter de acordá-la de manhã. É uma alegria e uma dor que me digas que ela fica expectante quando ouve a campainha, à espera que seja eu. É uma alegria e uma dor saber que ela sente a minha falta. Quero que ela sinta a minha falta, não quero que ela sinta a minha falta. Na verdade, o que quero mesmo é que ela sinta tudo. Tudo a que tem direito nesta vida.
Despeço-me de ti com uns versos daquela música de Sam Cooke, na qual ele canta: “But I do know that one and one is two,/ And if this one could be with you,/ What a wonderful world this would be.” Ele tem razão, só fez mal as contas, porque um mais um não são dois, somos nós os três.